segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Otmar atirou com a tenaz para cima de uma mesa e vociferou: e o que esperas atingir com uma história dessas? As cruzadas são a minha única possibilidade, minha e do Johann, de alcançar glória e riqueza»

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Lusbuna. Verão de 1142
«(…) Deus havia dado ao ferreiro mais famoso de Colónia seis filhas, mas nenhum herdeiro, e ele alimentava a esperança de que o jovem casasse com uma das duas ainda solteiras e um dia lhe tomasse conta da ferraria. Apesar da família dele ter caído em desgraça, Konrad nascera fidalgo, o que, como Otmar costumava dizer, saltava aos olhos de qualquer um. Só um cavaleiro poderia emanar tanta autoridade, como se nada nem ninguém fosse capaz de o amedrontar ou surpreender. Além disso, o ferreiro pretendia evitar que alguma das suas moças se precipitasse, pois notava como elas pareciam derreter perante os olhos que tanto eram cinzentos como azuis, conforme a luminosidade, e os longos cabelos castanhos. Konrad admitia que ter a ferraria como herança não era uma má perspectiva. Os outros dois ajudantes invejavam-no por isso. E quando se imaginava a casar com a loira Hildrun, uma das raparigas, a tentação era grande... Mas não cederia! Era filho de nobre e não passaria a sua vida a suar à boca do forno! Da sua herança perdida, conseguira salvar duas espadas, um punhal, um capelo e a cota de malha do seu pai, que ele tratava com desvelo. Nos seus tempos livres, tinha construído dois escudos, um para ele e outro para o Johann. Além disso, treinava-se na arte de combater com jovens da baixa nobreza, aspirantes a cavaleiros, que o tinham aceite no seu grupo. Nos primeiros tempos de trabalho na ferraria, planeara juntar dinheiro para comprar um bom cavalo, que lhe permitisse participar em torneios e ganhar grandes quantias ou até um feudo..., se houvesse outro doido, que, como o seu pai, apostasse o seu património!
Teve no entanto que desistir de tais planos, ao dar-se conta que só dali a uns cinco anos de poupanças drásticas possuiria o suficiente para averbar um bom animal. E depois, de quanto tempo precisaria até atingir todos os seus objectivos? Tinha sobretudo que pensar no Johann. O rapaz já completara quinze anos, não aprendia as artes da guerra e brevemente nada mais lhe restaria do que tornar-se monge. Konrad não se conseguia imaginar a viver num convento e pretendia salvar o irmão de tal destino. Ultimamente, surgira-lhe uma nova ideia: tomar o sinal da cruz! A cidade de Edessa, na Terra Santa, caíra há dois anos em poder dos turcos. Bernardo Claraval, o monge cisterciense mais famoso da Cristandade, mentor do próprio papa, tinha, nesse ano do Senhor de 1146, pregado a favor de novas cruzadas em toda a França, Borgonha, Lotaríngia e Flandres. Konrad ainda não tinha informado Otmar sobre estes planos. Agora, fosse porque o mestre o enervava, fosse por não mais poder adiar a questão, disse: Bernardo Claraval vai pregar pelas cruzadas na catedral de Speyer, no Natal. Não só por isso ele irá lá, replicou Otmar, que depositava novos pedaços de ferro no forno. O nosso arcebispo Arnold pediu-lhe para acabar com a matança dos judeus. O culpado é esse monge Radulf, opinou um dos ajudantes, enquanto dava ao fole. Ele é de opinião que a gente devia acabar com os inimigos de Deus aqui na nossa terra, antes de partir para a Terra Santa.
Um grande disparate!, retorquiu Otmar, que entre os seus clientes contava com judeus ricos. As cruzadas servem para tornar os caminhos e os lugares santos mais seguros aos nossos peregrinos. Ora, o que é que os judeus que aqui moram têm a ver com isso? Mas os pobres gostam de ouvir o monge Radulf pregar, insistiu o outro, desesperados como estão, depois do desastre das colheitas. Konrad também não via sentido nestas matanças de judeus, mas a história desviava a conversa do seu objectivo e anunciou: gostaria de ir a Speyer no Natal. Dás-me uns dias livres? O que te leva lá?, perguntou Otmar. Quero ouvir a pregação do monge Bernardo, para melhor me poder decidir. Decidir? Sim..., talvez embarque nas cruzadas. O quê? O mestre aprontava-se para tirar um pedaço de ferro do forno, mas interrompeu-se. Tu sabes desde o início que esta não é a vida que tenciono levar. Otmar atirou com a tenaz para cima de uma mesa e vociferou: e o que esperas atingir com uma história dessas? As cruzadas são a minha única possibilidade, minha e do Johann, de alcançar glória e riqueza. Esqueceste de que vos espera um empreendimento cheio de perigos? Eu sou um cavaleiro e não tenho medo da guerra! Um cavaleiro? Se não fosse eu, não tinhas sequer um prato de papa bolorenta por dia para forrar o estômago. Konrad esforçou-se por manter a calma: estou-te eternamente grato, mestre. Mas eu sou um homem livre e tenho o direito de fazer da minha vida o que muito bem entender. E queres levar o enfezado do Johann contigo? Ele nem sequer sabe o que é uma espada. Infelizmente é verdade. Mas a viagem dura meses, ele terá oportunidade de treinar. Se não morrer antes de cansaço. Não posso permitir que o rapaz apodreça num convento. Otmar sabia que não lhe adiantava opor-se a um homem que havia sido armado cavaleiro. Mas ainda disse: eu confio em ti, que diabo, e tinha tantas esperanças... Encontrarás outro. Quem não quer trabalhar para o famoso ferreiro Otmar? Quando se tornar conhecido que procuras um novo ajudante, forma-se logo uma bicha à porta da ferraria. E quando é que os cruzados se fazem ao caminho? Ainda não sei. Por isso quero ir a Speyer». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT