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Lusbuna.
Verão de 1142
«(…)
Deus havia dado ao ferreiro mais famoso de Colónia seis filhas, mas nenhum
herdeiro, e ele alimentava a esperança de que o jovem casasse com uma das duas
ainda solteiras e um dia lhe tomasse conta da ferraria. Apesar da família dele
ter caído em desgraça, Konrad nascera fidalgo, o que, como Otmar costumava
dizer, saltava aos olhos de qualquer um. Só um cavaleiro poderia emanar tanta
autoridade, como se nada nem ninguém fosse capaz de o amedrontar ou
surpreender. Além disso, o ferreiro pretendia evitar que alguma das suas moças
se precipitasse, pois notava como elas pareciam derreter perante os olhos que
tanto eram cinzentos como azuis, conforme a luminosidade, e os longos cabelos
castanhos. Konrad admitia que ter a ferraria como herança não era uma má
perspectiva. Os outros dois ajudantes invejavam-no por isso. E quando se
imaginava a casar com a loira Hildrun, uma das raparigas, a tentação era
grande... Mas não cederia! Era filho de nobre e não passaria a sua vida a suar
à boca do forno! Da sua herança perdida, conseguira salvar duas espadas, um
punhal, um capelo e a cota de malha do seu pai, que ele tratava com desvelo. Nos
seus tempos livres, tinha construído dois escudos, um para ele e outro para o
Johann. Além disso, treinava-se na arte de combater com jovens da baixa
nobreza, aspirantes a cavaleiros, que o tinham aceite no seu grupo. Nos
primeiros tempos de trabalho na ferraria, planeara juntar dinheiro para comprar
um bom cavalo, que lhe permitisse participar em torneios e ganhar grandes
quantias ou até um feudo..., se houvesse outro doido, que, como o seu pai,
apostasse o seu património!
Teve
no entanto que desistir de tais planos, ao dar-se conta que só dali a uns cinco
anos de poupanças drásticas possuiria o suficiente para averbar um bom animal.
E depois, de quanto tempo precisaria até atingir todos os seus objectivos?
Tinha sobretudo que pensar no Johann. O rapaz já completara quinze anos, não
aprendia as artes da guerra e brevemente nada mais lhe restaria do que
tornar-se monge. Konrad não se conseguia imaginar a viver num convento e
pretendia salvar o irmão de tal destino. Ultimamente, surgira-lhe uma nova
ideia: tomar o sinal da cruz! A cidade de Edessa, na Terra Santa, caíra há dois
anos em poder dos turcos. Bernardo Claraval, o monge cisterciense mais famoso
da Cristandade, mentor do próprio papa, tinha, nesse ano do Senhor de 1146,
pregado a favor de novas cruzadas em toda a França, Borgonha, Lotaríngia e
Flandres. Konrad ainda não tinha informado Otmar sobre estes planos. Agora,
fosse porque o mestre o enervava, fosse por não mais poder adiar a questão,
disse: Bernardo Claraval vai pregar pelas cruzadas na catedral de Speyer, no
Natal. Não só por isso ele irá lá, replicou Otmar, que depositava novos pedaços
de ferro no forno. O nosso arcebispo Arnold pediu-lhe para acabar com a matança
dos judeus. O culpado é esse monge Radulf, opinou um dos ajudantes, enquanto
dava ao fole. Ele é de opinião que a gente devia acabar com os inimigos de Deus
aqui na nossa terra, antes de partir para a Terra Santa.
Um
grande disparate!, retorquiu Otmar, que entre os seus clientes contava com
judeus ricos. As cruzadas servem para tornar os caminhos e os lugares santos
mais seguros aos nossos peregrinos. Ora, o que é que os judeus que aqui moram
têm a ver com isso? Mas os pobres gostam de ouvir o monge Radulf pregar,
insistiu o outro, desesperados como estão, depois do desastre das colheitas. Konrad
também não via sentido nestas matanças de judeus, mas a história desviava a
conversa do seu objectivo e anunciou: gostaria de ir a Speyer no Natal. Dás-me
uns dias livres? O que te leva lá?, perguntou Otmar. Quero ouvir a pregação do
monge Bernardo, para melhor me poder decidir. Decidir? Sim..., talvez embarque
nas cruzadas. O quê? O mestre aprontava-se para tirar um pedaço de ferro do
forno, mas interrompeu-se. Tu sabes desde o início que esta não é a vida que
tenciono levar. Otmar atirou com a tenaz para cima de uma mesa e vociferou: e o
que esperas atingir com uma história dessas? As cruzadas são a minha única
possibilidade, minha e do Johann, de alcançar glória e riqueza. Esqueceste de
que vos espera um empreendimento cheio de perigos? Eu sou um cavaleiro e não
tenho medo da guerra! Um cavaleiro? Se não fosse eu, não tinhas sequer um prato
de papa bolorenta por dia para forrar o estômago. Konrad esforçou-se por manter
a calma: estou-te eternamente grato, mestre. Mas eu sou um homem livre e tenho
o direito de fazer da minha vida o que muito bem entender. E queres levar o
enfezado do Johann contigo? Ele nem sequer sabe o que é uma espada. Infelizmente
é verdade. Mas a viagem dura meses, ele terá oportunidade de treinar. Se não
morrer antes de cansaço. Não posso permitir que o rapaz apodreça num convento.
Otmar sabia que não lhe adiantava opor-se a um homem que havia sido armado
cavaleiro. Mas ainda disse: eu confio em ti, que diabo, e tinha tantas
esperanças... Encontrarás outro. Quem não quer trabalhar para o famoso ferreiro
Otmar? Quando se tornar conhecido que procuras um novo ajudante, forma-se logo
uma bicha à porta da ferraria. E quando é que os cruzados se fazem ao caminho? Ainda
não sei. Por isso quero ir a Speyer». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas,
Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT