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As
Mulheres de Camões
Violante
de Andrade. 1543
«(…)
Quando o vento muda, respira-se aqui em Xabregas o aroma a canela, a
noz-moscada e a açafrão, armazenados na Casa da Índia. É ao longo das muralhas,
junto ao Tejo, que todos os grandes senhores têm os seus palácios. E se por
aqui os construímos. dizem as más-línguas, é porque somos dados ao negócio
da China. O apelo do ouro e dos tesouros vindos do Oriente leva muita gente
a cometer verdadeiras loucuras. Há quem se endivide até mais não por culpa ou
virtude, por graça ou desgraça de um qualquer negócio da China. Conheço muitos,
ultimamente endinheirados, que parecem o que não são e são o que não parecem. E
os Grandes, os verdadeiramente Grandes, entre os quase 100 mil habitantes da
capital, contam-se pelos dedos das mãos: nós. os Linhares; os Marialva, os Loulé,
os Aveiro. os Vimioso, os Alegrete, os Telles, os Távora, os Ataíde..., umas dezenas
de famílias titulares que seguem a Corte para onde vá.
Mas
naquela primeira noite, como dizia. nada senti senão dor e medo. Sabia que
tinha andado a fugir daquele medo, mas o medo acabara por me apanhar. Desde
então nada sinto senão dor e medo. Antoninho nasceu três anos depois, tinha eu
quinze primaveras. Sabe Deus O que passei com aquele homem inteiro a rasgar-me
o corpo por dentro, a desfazê-lo em pedaços, a sorver-me as entranhas até que
um caudal imenso de besta-fera o dissesse saciado. Jurei que não haveria de amar
homem algum, nem príncipe, nem marinheiro, nem embaixador, nem poeta, nem soldado.
E é aí que reside a minha liberdade.
Francisco,
meu marido. deve estar prestes a tornar ao Reino. Tomou o cargo de embaixador
em Paris, onde por três anos honrou a Coroa, apesar das habituais intrigas para
o derrubarem... Até de espionagem o acusaram! O rei João III e o imperador
Carlos V de Espanha são mais chegados do que agulha a dedal e o grande inimigo de
Carlos V é o próprio Francisco I de França, com quem arde em conflito
permanente. Tudo os separa: é a linha que divide o mundo assinada em
Tordesilhas, são os ataques dos piratas e do corso francês, é a vontade que o rei
de França tem em se lançar pelos mares, rompendo o poder dos nossos reis
ibéricos. O senhor meu marido, embaixador em Paris, está no centro do furacão.
Não
o amo. Nunca o amei, nem a ele nem a ninguém, pois que o amor não se conjuga
com a vontade e só serve para nos deixar vulneráveis. O amor cria vício e o
vício torna-nos dependentes e desventurados. Tive uma infância de oiro, sou
dama galante e sei que encorajo os homens da Corte sempre que vou ao paço de
El-Rei João III e de dona Catarina assistir a recitais, jogar às cartas ou ao xadrez
e dançar. Ai o que me endoidece aquela música... Adoro provocar, adoro
galantear. Mais me distraio com essa arte do que com o bobo Panasco e os demais bufões, a
representarem certos autos de tal forma aborrecidos que não paro de bocejar.
João
III anda cada vez mais pesado e bonacheirão. Tudo nele descai: o ventre, as
bochechas, as pálpebras. Nem na forma de trajar se moderniza, continua sóbrio e
enfadonho. Quando Manuel I, seu pai, passou a vestir à flamenga, ele continuou
de finca-pé no pelote felpudo de mangas trançadas, na capa e na gorra de voltas.
A única jóia que não dispensa é o anel de esmeralda. Crê El-Rei em tudo o que lhe
dizem. Ainda há dias, estando comendo peixe, disse-lhe um dos físicos que
assistiam ao real repasto que comesse só o rabo do peixe, por ser o mais sadio.
Disse-o com grande certeza, pois que o peixe era muito húmido e. posto que
nadava dando ao rabo, o movimento lançava dele muita parte da humidade natural,
ficando por essa razão menos húmido, mais sadio. El-Rei, a partir de então, do
peixe só come o rabo! E, já se sabe, agora, na Corte, só se come. do peixe, o
rabo! E andam também menos descontentes dos rabos das mulas, que sempre abanam
para cá e para lá, pois hão-de agora entender que, das mulas, o rabo é a melhor
parte. Jesus, que ignara gente!» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.
Cortesia de Oficina do
Livro/JDACT