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«Longe
de imaginar o quanto aquela notícia nos dizia respeito, e os efeitos devastadores
que teria nas nossas vidas, demorei a adormecer. Ainda hoje, trinta anos depois,
seis internamentos depois, centenas de caixas de comprimidos depois, sessões de
psicanálise, mesas de pé-de-galo, sanatórios, termas, casas de repouso, choques
eléctricos, dou por mim deitado na cama, de olhos pregados no tecto, a pensar nesses
dois pobres maquinistas, frente a frente, sem tempo para uma travagem de emergência,
sem tempo para saltarem das locomotivas e rolarem como cowboy sobre um manto de
feno, sem tempo sequer para se questionarem acerca das circunstâncias insólitas,
colossais, em que se encontravam, aos comandos dos seus exércitos indomáveis,
semelhantes a dois generais inimigos que se reunissem entre as linhas avançadas
para negociações de última hora, para uma tentativa de entendimento que evitasse
a derrota e a chacina, e, porém, absolutamente conscientes da sua impotência para
anularem o confronto, para o adiarem até, nem que fosse por breves segundos. escassíssimos
segundos, os segundos suficientes para dizerem, em desolado uníssono: estamos metidos
numa alhada!
Poderiam
depois trocar duas ou três palavras de conforto, histórias antigas, o amor aos comboios.
Talvez um deles, o de temperamento mais caloroso, começasse por confessar que, em
miúdos, ele e o irmão se entretinham a apanhar escaravelhos, gafanhotos, lesmas,
grilos, lagartixas, toda a espécie de bichos que saltam ou rastejam, e que,
quais vítimas de um sacrifício que aplacasse a fúria dos deuses, os colavam com
resina ao ferro dos carris, momentos antes da passagem do Rápido proveniente da
Guarda ou dos vagões carregados de volfrâmio das minas da Panasqueira, comboios
demasiado importantes para efectuarem paragem no pequeno apeadeiro cujo nome inscrito
em azulejos testemunhava o domínio islâmico sobre aquelas terras até meados do século
XI, altura em que os devotos das santas chagas de Cristo, sob os comandos de Fernando
I, rei de Leão e Castela, expulsaram os Sarracenos da faixa circunscrita pelos rios
Douro e Mondego. Novecentos anos volvidos sobre tão ilustre peleja, seria nesse
apeadeiro que o pai do maquinista, humilde funcionário dos Correios e amante de
banda desenhada, aguardaria, duas vezes por semana, a chegada do Regional que vinha
de Lisboa e, em troca de dez ou quinze tostões, receberia das mãos do revisor
uma revista com as mais recentes aventuras do Capitão Meia-Noite, do Flash Gordon,
do Mandrake, do Barão de Dorset, do Kit Carson.
Chegado
a este ponto, é bem possível que o maquinista fizesse uma pausa, uma dessas pausas
que, quando acompanhadas de um movimento descendente do olhar, quase sempre antecedem
uma ligeira inflexão na voz, colocando-a dois ou três tons mais abaixo, e revelam,
por parte de quem se prepara para prosseguir o rumo de uma confidência, o receio
de vir a ser condenado pelo juízo moral do interlocutor. Claro que este receio pode
adquirir diferentes matizes e significados, dependendo não só da matéria de que
se constitui a confidência, mas, sobretudo, da relação que já existe, ou está prestes
a existir, entre quem fala e quem ouve. No caso destes maquinistas, estamos perante
dois estranhos, dois homens que não se conhecem; no entanto, é provável que se tenham
cruzado inúmeras vezes, a altíssimas velocidades, em circunstâncias que não permitiram
mais do que um simples aceno; é provável até que tenham ambos a vaga memória de
um encontro fortuito ocorrido há muitos anos, ao balcão de um desses cafés que
existem no interior das grandes estações terminais; ou numa casa de banho pública,
aliviando-se em urinóis adjacentes, trocando desabafos acerca do cheiro a mijo,
do tempo, do futebol, enquanto os olhos repousavam, distraídos, na superfície polida
da pedra mármore. Durante anos partilharam as mesmas linhas-férreas; viram
repetidamente as mesmas paisagens; tentaram cumprir à risca os mesmos horários e
os mesmos procedimentos de segurança; sentaram-se com zelo aos comandos das
mesmas locomotivas, e os gestos mecanizados de um foram os gestos mecanizados do
outro; em certas noites de Maio, junto aos desfiladeiros das Portas de Ródão,
maravilharam-se com o mesmo reflexo da Lua sobre o Tejo, e sempre que chegaram à
estação de Santa Apolónia, a abarrotar de Amélias e magalas, sentiram a mesma melancolia,
a mesma vontade imensa e inexplicável de chorar». In João Ricardo Pedro, Um Postal
de Detroit, 2016, Publicações dom Quixote, Leya, 2016, ISBN 978-972-205-949-7.
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