quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Número Zero. Umberto Eco. «… vivi em diversas cidades, revi provas para, pelo menos, três editoras (universitárias, nunca para os grandes editores)…»

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«(…) Sustentei-me, então, escrevinhando. Pensava escrever nos jornais, mas só me deram ouvidos alguns diários locais, coisas como a crítica teatral dos espectáculos de província e das companhias itinerantes. Ainda cheguei a fazer recensões, por uma ninharia, a espectáculos de revista, espreitando por entre bastidores as bailarinas vestidas de marujos, fascinado com a sua celulite e indo atrás delas à leitaria, a jantar um galão, se não estavam tesas, um ovo estrelado. Ali tive as minhas primeiras experiências sexuais com uma cantora, em troca de uma pequena nota indulgente, para um jornal de Saluzzo, mas para ela era suficiente. Não tinha pátria, vivi em diversas cidades (cheguei a Milão apenas por causa da chamada de Simei), revi provas para, pelo menos, três editoras (universitárias, nunca para os grandes editores), para uma revi as entradas de uma enciclopédia (era preciso verificar as datas, os títulos das obras, e por ai fora), tudo trabalhos com os quais formei aquilo a que, a um certo ponto, Paolo Víllaggio chamou uma cultura monstruosa. Os perdedores, como os autodidactas, têm sempre conhecimentos maís vastos do que os vencedores: se gueres vencer tens de saber uma coisa só e não perder tempo a sabê-las todas, o prazer da erudição está reservado aos perdedores. Quantas mais coisas uma pessoa sabe, maís as coisas não lhe correram como deveriam. Dediquei-me, durante alguns anos, a ler manuscritos, que os editores (às vezes, até aqueles importantes) me passavam porque ninguém lá tinha vontade de os ler. Davam-me cinco mil liras por manuscrito, eu passava o dia inteiro estendido na cama a ler furiosamente, depois redigia um parecer de duas páginas, dando o melhor do meu sarcasmo para destruir o autor incauto, na editora todos ficavam aliviados, escreviam para o desprecavido que lamentavam recusar, e pronto. Ler manuscritos que nunca serão publicados pode tornar-se uma profissão. Entretanto, tinha havido o caso com Anna, terminado como tinha de terminar. Desde então, nunca mais consegui (ou ferozmente não quis) pensar com interesse numa mulher, porque tinha medo de falhar de novo. Ao sexo recorri de forma terapêutica, uma ou outra aventura casual, em que não tens medo de te apaixonar, uma noite e já está, obrigado, foi simpático, e alguma relação periódica paga, para não estar obcecado com o desejo (as bailarinas tinham-me tornado insensível à celulite). Entretanto, sonhava com o que sonham todos os perdedores: escrever um dia um livro que me daria glória e riqueza. Para aprender como tornar-me um grande escritor, cheguei a escrever anonimamente (fazer de ghost writer, como se diz hoje em dia, para ser politicamente correcto) para um autor de romances policiais, que, por sua vez, para vender assinava com nome americano, como os actores dos westerns spaghetti. Mas era bom trabalhar à sombra, coberto por duas cortinas (o Outro e o outro nome do Outro). Escrever romance policial alheio era fácil, bastava imitar o estilo de Chandler ou, na pior das hipóteses, de Spillane; mas, quando tentei inserir algo que fosse meu, percebi que para descrever alguém ou algo eu remetia a situações literárias: não era capaz de dizer que fulano estava passeando numa tarde límpida e clara, mas dizia que estava andando sob um céu digno de Canaletto. Mas depois me dei conta de que D’Annunzio também fazia isso: para dizer que certa Costanza Landbrook tinha algumas qualidades, ele escrevia que ela parecia uma criatura de Thomas Lawrence; sobre Elena Muti, observava que seus traços lembravam certos perfis de Moreau jovem, e Andrea Sperelli lembrava o retrato do fidalgo desconhecido da Galleria Borghese. E assim, para ler um romance, era preciso ir folhear os fascículos de alguma enciclopédia da história da arte vendida em bancas de jornal. Se D’Annunzio era mau escritor, não significava que eu também deveria ser. Para me livrar do vício da citação decidi parar de escrever». In Umberto Eco, Número Zero, 2015, tradução de José Vaz Carvalho, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.

Cortesia de Gradiva/JDACT