terça-feira, 20 de setembro de 2016

A Trança Feiticeira. Henrique Fernandes. «Não confiou em ninguém a aventura vivida. Nem a Abelha-Mestra a quem solicitava conselhos e advertências. As amigas à noite estranharam. Não costumava ter aquele ar ausente»

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«(…) Se visse a roupa que tinha e a quantidade de sapatos. Nisto, era muito exigente. Queria as calças bem vincadas, as camisas sem a mais pequena nódoa, os sapatos sempre lustrosos. Mas não berrava. Dizia o que queria. na sua amabilidade, e não era necessário repetir. Todos se esforçavam para lhe satisfazer os gostos. Mais baixinho. em coro, acrescentavam: o menino era uma jóia ao contrário dos outros. As senhoras, de língua afiada, impertinentes, sempre a descobrir e apontar defeitos. Todas umas preguiçosas que até obrigavam as criadas a deixarem as suas tarefas, para erguer do chão um lenço, caído aos pés delas. E o patrão movia-se nas mesmas águas, desabrido nas suas ordens que queria cumpridas rigorosamente, sob pena de violenta censura ou sumário despedimento.
A-Leng, já refeita do abalo, estava agora cheia de curiosidade. Até se esquecera doutras encomendas de água. Fazia perguntas, aceitava a lengalenga, sem desconto dos exageros. por qualquer prevenção íntima, não revelou que o Menino a sequestrava. Bebeu duas tigelas de chá, em vez duma, e comeu uma fatia de bolo, feito
na véspera, que a senhora distribuíra às criadas. Quando saiu, ia, de facto, abalada. O conceito sobre o homem até então perverso, modificara-se. Não confiou em ninguém a aventura vivida. Nem a Abelha-Mestra a quem solicitava conselhos e advertências. As amigas à noite estranharam. Não costumava ter aquele ar ausente, o pensamento muito longe. Não se intrometia nas conversas, num silêncio distraído. Durante a noite inteira, a imagem do rapaz não a largou. Isto desesperou-a, porque estava mesmo a pensar demasiado nele, no tratamento gentilíssimo de siu-tché e no facto de deixá-la entrar primeiro através da porta. Com outro tipo de cara, não era nada feio, ao contrário do que a princípio achara.
À hora de levar a água da fonte, para a casa dele, enervara-se toda. O que sucederia nesse dia? Nada e teve uma desilusão. Não o viu, durante três dias. Guardou admirada outras tantas decepções. Ter-se-ia arrependido de conhecê-la, agora que era a aguadeira da casa? Temeria que ela fizesse alguma queixa? Mas se queixa houvesse, seria logo no primeiro dia. O que não adivinhava era que tudo fora planeado. Adozindo, com notável paciência queria que meditasse nele. No quarto dia, tivera um dia cansativo. Por mais que se empenhasse não chegaria à hora precisa, na casa do rapaz. Caminhava a passo regular, o corpo teso, as ancas a bambolear, ao ritmo pendular dos baldes. Nas axilas e nas costas, grandes manchas de suor. Na franja das calças e nos pés nus, lama. A única coisa limpa e apresentável, a trança negra, o seu incontestável orgulho. No cruzamento de duas ruas estreitas, parou, na sombra precária, para tomar alento. O sol de Junho refulgia implacável. Esfregou o rosto suarento, com o lenço pendurado na abertura da cabaia, junto à anca, devassando as artérias. Uma voz soou atrás. Boa-tarde. Estremeceu. Afinal, não a esquecera. Ele ali estava asseado, a camisa muito alva, o rosto cheirando a perfume que mais tarde aprendeu ser água de Colónia. Na mão direita, sangravam duas rosas aveludadas. O bem-estar dele era flagrante. Ela teve, pela primeira vez, a dolorosa noção de que estava suja, coberta de poeira, o corpo emanando a suor. Oferecendo as rosas, Adozindo disse: toma. Colhia-as para ti. São do meu jardim. Não posso aceitar. Tenho as mãos ocupadas. Queres que as deite fora? Não. São muito bonitas». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.

Cortesia da FOriente/JDACT