quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Um estranho em Goa. José Eduardo Agualusa. «Aquele era o Rio Quanza. As casas, adormecidas ao sol, repetiam o claro desenho das ruas do Dondo. Atordoado pelo calor, voltei a experimentar o estranho sentimento de me encontrar num lugar esquecido»

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Plácido Domingo contempla o Mandovi
«(…) Logo que o vi soube que era ele. Trouxera comigo velhas fotografias. Numa delas Plácido Domingo estava vestido de camuflado e estudava um mapa. Era um homem bonito, alto e sólido, de bigode e pêra ao estilo da época, todos os homens queriam ficar parecidos com Lenine. Numa outra fotografia aparecia encostado a um jipe, sorrindo, rodeado por jovens guerrilheiros. Havia ainda uma imagem preciosa: Plácido Domingo, com uma metralhadora a tiracolo, ao lado de Agostinho Neto e Mário Pinto Andrade. Coloquei as fotografias em cima da mesa: comandante Maciel? Ia a dizer, presumo, mas contive-me. O velho olhou para mim sem surpresa: demorou muito, meu jovem. Trouxe as fotografias comigo. Espalho-as sobre a cama. Conheço de cor cada uma delas. Existe de facto essa imagem preciosa: Plácido Domingo, com uma metralhadora a tiracolo, ao lado de Agostinho Neto e Mário Pinto Andrade. Continuemos: eu estava em Corumbá há uma semana. Viajara durante dois dias, de autocarro, entre o Rio de Janeiro e Campo Grande. Em Campo Grande entrevistei o poeta Manoel Barros. Já a caminho de Corumbá, enquanto o autocarro seguia aos solavancos por uma estrada de terra, tive tempo para reler a minha colecção de artigos sobre o comandante Maciel. Pouca gente conhecia o seu verdadeiro nome: Plácido Afonso Domingo.
Em 1962 ele era capitão do exército português. Nesse ano, numa operação cujo escândalo o regime de Salazar não conseguiu sufocar, desviou um avião para Brazaville e juntou-se aos guerrilheiros do MPLA. Desaparecia o capitão Afonso Domingo e nascia um mito: o comandante Maciel. Após a Revolução de Abril desembarcou no aeroporto de Luanda, com outros dirigentes do movimento, e foi levado em ombros por uma multidão febril. Num dos artigos que eu trouxe, um recorte do jornal Diário de Luanda, com a data de 15 de Agosto de 1974, há uma fotografia que mostra a chegada a Luanda de alguns dirigentes do MPLA. Um dos homens, em primeiro plano, parece intrigado e receoso. Consigo escutar, à distância de vinte e cinco anos, o coração dele: Chegámos, minha mãe, chegámos onde? No artigo não se faz menção ao comandante Maciel, este também não é, evidentemente, o seu verdadeiro nome de guerra, mas disseram-me que veio com aquele grupo. Podia ser o tipo que aparece de costas, no canto superior esquerdo, abraçando uma mulher. A estrada corria por entre lagoas brilhantes. Vi os jacarés adormecidos ao sol. Vi uma sucuri enrolada num pau. Pouco a pouco o céu mudou de cor, e as árvores encheram-se de pássaros: garças de asas luminosas, araras vermelhas, bandos de periquitos. As primeiras luzes de Corumbá brilhavam na noite quando me lembrei da velha cidade do Dondo (Plácido Domingo era do Dondo). Na manhã seguinte, ao contemplar o rio, compreendi o que levara o velho guerrilheiro a ficar ali. Aquele era o Rio Quanza. As casas, adormecidas ao sol, repetiam o claro desenho das ruas do Dondo. Atordoado pelo calor, voltei a experimentar o estranho sentimento de me encontrar num lugar esquecido. O mundo passara por aquelas ruas, e fora-se embora. O branco casario do porto pertencia a uma outra era, quando o futuro começava em Corumbá. Um velho pescador, limpando o suor do rosto com a ponta da camisa, contou-me que a cidade já fora o maior porto da América Latina. Eu conhecia a história. Primeiro a opulência, o fausto, a seguir a notícia de que o comboio avançara do litoral até uma cidade próxima, deixando o rio de ser o principal caminho. E depois o abandono. Risquei a segunda pergunta do meu caderno de apontamentos: por que decidiu viver em Corumbá? A primeira pergunta, na verdade, é que me fizera percorrer aquela distância toda: o senhor saiu de Angola em 1975 e não regressou. O que aconteceu? Plácido Domingo estava à espera que eu lhe perguntasse aquilo. Acho que esperara vinte anos: muito provavelmente você vai-se arrepender de me ter feito essa pergunta...» In José Eduardo Agualusa, Um Estranho em Goa, 2000, Livros Cotovia, Lisboa, colecção Série Oriental, Viagens, 2000, Fundação Oriente, ISBN 978-972-842-385-8.

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