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Plácido
Domingo contempla o Mandovi
«(…)
Logo que o vi soube que era ele. Trouxera comigo velhas fotografias. Numa delas
Plácido Domingo estava vestido de camuflado e estudava um mapa. Era um homem
bonito, alto e sólido, de bigode e pêra ao estilo da época, todos os homens
queriam ficar parecidos com Lenine. Numa outra fotografia aparecia encostado a
um jipe, sorrindo, rodeado por jovens guerrilheiros. Havia ainda uma imagem
preciosa: Plácido Domingo, com uma metralhadora a tiracolo, ao lado de Agostinho
Neto e Mário Pinto Andrade. Coloquei as fotografias em cima da mesa: comandante
Maciel? Ia a dizer, presumo, mas contive-me. O velho olhou para mim sem
surpresa: demorou muito, meu jovem. Trouxe as fotografias comigo. Espalho-as
sobre a cama. Conheço de cor cada uma delas. Existe de facto essa imagem
preciosa: Plácido Domingo, com uma metralhadora a tiracolo, ao lado de
Agostinho Neto e Mário Pinto Andrade. Continuemos: eu estava em Corumbá há uma
semana. Viajara durante dois dias, de autocarro, entre o Rio de Janeiro e Campo
Grande. Em Campo Grande entrevistei o poeta Manoel Barros. Já a caminho de
Corumbá, enquanto o autocarro seguia aos solavancos por uma estrada de terra,
tive tempo para reler a minha colecção de artigos sobre o comandante Maciel.
Pouca gente conhecia o seu verdadeiro nome: Plácido Afonso Domingo.
Em
1962 ele era capitão do exército português. Nesse ano, numa operação cujo
escândalo o regime de Salazar não conseguiu sufocar, desviou um avião para
Brazaville e juntou-se aos guerrilheiros do MPLA. Desaparecia o capitão Afonso
Domingo e nascia um mito: o comandante Maciel. Após a Revolução de Abril
desembarcou no aeroporto de Luanda, com outros dirigentes do movimento, e foi
levado em ombros por uma multidão febril. Num dos artigos que eu trouxe, um
recorte do jornal Diário de Luanda, com a data de 15 de Agosto de 1974, há uma
fotografia que mostra a chegada a Luanda de alguns dirigentes do MPLA. Um dos
homens, em primeiro plano, parece intrigado e receoso. Consigo escutar, à
distância de vinte e cinco anos, o coração dele: Chegámos, minha mãe, chegámos
onde? No artigo não se faz menção ao comandante Maciel, este também não é,
evidentemente, o seu verdadeiro nome de guerra, mas disseram-me que veio com
aquele grupo. Podia ser o tipo que aparece de costas, no canto superior
esquerdo, abraçando uma mulher. A estrada corria por entre lagoas brilhantes.
Vi os jacarés adormecidos ao sol. Vi uma sucuri enrolada num pau. Pouco a pouco
o céu mudou de cor, e as árvores encheram-se de pássaros: garças de asas
luminosas, araras vermelhas, bandos de periquitos. As primeiras luzes de
Corumbá brilhavam na noite quando me lembrei da velha cidade do Dondo (Plácido
Domingo era do Dondo). Na manhã seguinte, ao contemplar o rio, compreendi o que
levara o velho guerrilheiro a ficar ali. Aquele era o Rio Quanza. As casas,
adormecidas ao sol, repetiam o claro desenho das ruas do Dondo. Atordoado pelo
calor, voltei a experimentar o estranho sentimento de me encontrar num lugar
esquecido. O mundo passara por aquelas ruas, e fora-se embora. O branco casario
do porto pertencia a uma outra era, quando o futuro começava em Corumbá. Um
velho pescador, limpando o suor do rosto com a ponta da camisa, contou-me que a
cidade já fora o maior porto da América Latina. Eu conhecia a história.
Primeiro a opulência, o fausto, a seguir a notícia de que o comboio avançara do
litoral até uma cidade próxima, deixando o rio de ser o principal caminho. E
depois o abandono. Risquei a segunda pergunta do meu caderno de apontamentos: por
que decidiu viver em Corumbá? A primeira pergunta, na verdade, é que me fizera
percorrer aquela distância toda: o senhor saiu de Angola em 1975 e não
regressou. O que aconteceu? Plácido Domingo estava à espera que eu lhe
perguntasse aquilo. Acho que esperara vinte anos: muito provavelmente você
vai-se arrepender de me ter feito essa pergunta...» In José Eduardo Agualusa,
Um Estranho em Goa, 2000, Livros Cotovia, Lisboa, colecção Série Oriental,
Viagens, 2000, Fundação Oriente, ISBN 978-972-842-385-8.
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