quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O Papa Negro. Ernesto Mezzabota. «Paris, Madrid, Roma, queimavam os protestantes; Londres e Genebra perseguiam e destruíam os católicos»

Cortesia de wikipedia

A assembleia dos templários
«(…) Tomada a cidade pelas forças superiores dos inimigos, fechei-me na cidadela da fortaleza, decidido a resistir até ao fim, e assim o fiz; mas quando de espada em punho defendia a brecha, fui ferido por uma pedrada numa perna. Caí sem sentidos, e quando os recuperei a fortaleza e eu tínhamos caído em poder dos franceses. Fui tratado com singular cortesia por aqueles guerreiros, acostumados a apreciar a valentia dos inimigos. Curei-me, e por ordem do senhor de Foix fui transportado para o meu palácio paterno, na Biscaia. Ali tive de permanecer longo tempo, porque o meu ferimento tinha sido tão mal curado, que foi necessário tornarem-me a desmanchar a perna para a arranjar de novo. Perdoai-me, meus irmãos, se vos roubo o tempo, falando-vos destes miseráveis tormentos que sofri, mas preciso dizer-vos tudo para vos poder explicar a maneira miraculosa por que se efetuou a mudança da minha alma. Eu tinha, como vós bem sabeis, todos os predicados para ser um cavaleiro belo e elegante. Imaginai por isso como eu ficaria quando soube que aquele ferimento me condenava a ficar coxo para toda a vida!... Adeus esplendor do vestuário, pompas daí pedrarias, amor das damas!.. Adeus, volteios rápidos da dança e todas as alegrias que o prestígio da beleza proporciona aos homens! Podeis crer, meus irmãos, que nenhum suplício humano se poderia equiparar ao que eu sofri quando me falaram daquela desgraça, que agora considero como uma bênção do céu. Pareceu-me que a causa do mal era um osso da perna que se me tinha deslocado, e por isso quis que mo tirassem, e apesar das dores atrozes que isso me causou, consenti que os médicos mo serrassem. Pois vendo que apesar de tudo uma perna me ficara mais curta do que a outra, submeti-me a outro tormento ainda mais horrível: apliquei à perna mais curta um aparelho que a cada instante lhe imprimia um esticamento, que me causava dores atrozes. Os ossos estalavam, as dores faziam-me emperlar um suor frio à raiz dos cabelos, mas tudo foi inútil: fiquei coxo.
Durante a minha doença, quis o Senhor que me viesse o desejo de ler, e pedi que me trouxessem romances de cavalaria. A Providência determinou que em vez desses livros me viessem às mãos a Vida de Jesus Cristo e Fios Sanctorum. Li-os, ao princípio com repugnância, depois com prazer e afinal com entusiasmo. Quando a minha perna estava curada, bem outro era também o estado do meu espírito: eu já não era um galanteador vaidoso, um soldado sanguinário. Era um cristão. Aquela narrativa, que hoje em dia enfastiaria soberanamente qualquer auditório, por menos ilustrado que fosse, era, pelo contrário, escutada por aquela assembleia com uma atenção sincera e quase febril. Com efeito, naquele tempo ninguém olhava com indiferença as coisas da religião. O grande movimento, que se produzira na Alemanha, suprimira os indiferentes e dividira-os todos em duas classes bem distintas: uma, que era constituída pelos que respeitavam e obedeciam à Igreja romana, confessando-se seus campeões; outra, que era formada pelos que se apresentavam para abalar as bases do edifício do pontificado, fazendo ruir com ele todas as velhas instituições que tinham o apoio e consagração da Igreja.
Ser indiferente naqueles tempos aos assuntos religiosos seria tão impossível como nos ditosos dias de 1848 conservar-se estranho aos movimentos políticos. Era preciso tomar-se parte naqueles ou nestes; ser por Lutero ou por Clemente, pela autoridade eclesiástica, ou pela liberdade do pensamento. De uma e outra parte, a fé estava de tal modo sobre-excitada, que nenhuma força humana poderia impedir que as discussões fossem tempestuosas, violentas e irreprimíveis. Como acontecera nos primeiros tempos do Cristianismo, o apostolado fazia-se à custa do martírio. Paris, Madrid, Roma, queimavam os protestantes; Londres e Genebra perseguiam e destruíam os católicos. E por isso aquela narrativa ascética de Loiola correspondia tão exactamente às preocupações da ocasião, às agonias daquelas mudanças constantes, que todos seguiam a manifestação daquele sentimento religioso com o mesmo interesse que hoje despertaria o mais comovente drama de ambições ou de amor. Continua! Continua!, gritaram de todos os lados. Inácio de Loiola sentia que todos os olhares o fitavam com viva atenção; e a única paixão que o dominava, a de se impôr aos outros, quer fosse pela admiração quer pelo medo, achava-se assim completamente satisfeita nele. Aquele convertido não tinha mudado nada quanto ao fundo do coração. Era sempre o arcanjo fulminado, que levantava orgulhosamente a fronte para o céu, vencido mas não abatido pelo raio de Deus: a sua ambição, assim tão duramente desviada dos esplendores mundanos, tinha mudado de direcção, mas nem por isso tinha diminuído.
Quando eu senti que a graça divina despertava em mim os sentimentos adormecidos, prosseguiu com voz mais segura o peregrino, voltei-me para a Virgem, e diante do altar dela fiz voto de castidade. Depois resolvi fazer a vigília de armas, que tem de fazer todo o cavaleiro, antes que possa cingir o sagrado cinto da ordem. Uma noite inteira passei diante do altar, orando, chorando, consagrando-me todo à milícia de Cristo. No dia seguinte pendurei a minha espada num pilar da igreja, dei a um pobre os meus trajes de cavaleiro, cingi o corpo com uma corda, vesti-me de burel, e dirigi-me a pé para Manresa. Que mais vos direi, meus irmãos? Amparado por uma fé sobre-humana, castiguei o corpo com mil penas e tormentos; infligi-me as mais cruéis privações, sem que nada pudesse alterar a minha saúde de ferro. Cingi os rins de cilícios; dormi na terra fria, mendiguei de porta em porta, e julgava-me feliz quando recebia mau tratos ou injúrias, que vinham aumentar o valor da minha expiação. Finalmente, a seiscentos passos de Manresa encontrei uma gruta oculta a todos os olhares. Foi essa que eu escolhi para minha habitação; aí recebi os tormentos e as privações como um favor do céu; aí experimentei as doçuras do êxtase divino e o langor da morte aparente. Enfim, meus irmãos, foi aí que... Neste ponto Inácio fez uma pausa, como quem se assustava que ia dizer. Fala, fala!, gritaram de todos os lados». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, 1947, tradução de Adolfo Portela, Brasil, Exilado dos Livros, Epub, 2001, ISBN 858-671-001-6.

Cortesia de Wikipedia/JDACT