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«(…)
Baixei os olhos para disfarçar minha consternação. Aquelas palavras não eram
novidade para mim, mas, vindas dele, apunhalavam em cheio meu coração. Óptimo. James
girou o vinho algumas vezes antes de beber. Jovem demais, sentenciou ao baixar
a taça. Carece de complexidade. Que desperdício. Ele e eu tínhamos nascido
praticamente um ao lado do outro, mas em mundos completamente distintos. A
única coisa que nós, mortais, conseguíamos ver da família Moselane eram os
carros luxuosos com janelas de vidro escuro que passavam depressa pelas ruas de
nossa tranquila cidadezinha, parando só alguns segundos para esperar o portão
automático de sua imensa entrada de garagem se abrir. Isso e, de vez em quando,
por entre os arbustos densos e espinhosos que cercavam esse éden particular, um
vislumbre de pessoas distantes jogando ténis na relva da propriedade e suas
risadas carregadas pela brisa como papéis de bala vazios. Embora quase todas as
pessoas na cidade soubesse o nome e a idade dos filhos de lorde e lady
Moselane, eles eram tão distantes de nós quanto os personagens de um livro.
Como todos estudavam em colégios internos, os melhores do país, é claro, o
jovem James e suas irmãs nunca eram vistos durante o ano lectivo, e quase todas
as suas férias pareciam ser passadas com amigos de escola em castelos isolados
na Escócia.
Apesar
de ser pouco mais do que um chumaço de cabelos ruivos na primeira fila da missa
natalina anual, na minha imaginação o filho e herdeiro de lorde Moselane tinha
uma vida muito real. Sempre que eu saía aos domingos com meus pais e, por algum
tempo, também com minha avó, ia saltitando na frente pela floresta na esperança
de encontrá-lo a cavalo, com sua capa flutuando à brisa como um nobre de
verdade..., mesmo sabendo muito bem que ele era aluno interno em Eton, depois
em Oxford, e que não havia ninguém ali a não ser eu e minhas ideias ridículas. Mas
eu não estava totalmente sozinha nesse mundo imaginário. Isso porque, pelo que
me lembrava, minha mãe ansiava por se tornar íntima dos Moselanes, que afinal
de contas eram nossos vizinhos. Pelos seus cálculos, o facto de meu pai ser
director da escola da cidade deveria ter nos colocado numa posição de grande
estima e, portanto, nos tornado visíveis até mesmo do casarão no alto do morro.
Mas depois de passar a maior parte da vida de casada esperando em vão um
convite para jantar encimado por aquele brasão em relevo, ela por fim foi obrigada
a reconhecer que nosso lorde e sua esposa seguiam uma cartilha social bem
diferente da sua. Eu nunca entendi por que minha mãe, norte-americana até à
raiz dos cabelos, nunca perdeu essa ânsia pelo belo casarão, mesmo depois de
tantas amargas decepções. Todos aqueles anos de voluntariado nos eventos
beneficentes de milady na esperança de ser reconhecida; todos aqueles anos
aparando com esmero os 7 metros de sebe que separavam o canto mais remoto da
propriedade dos Moselanes da horta no fundo de nosso quintal..., tudo em vão.
Quando
me mudei para Oxford para fazer o doutoramento, tinha tanta certeza de que ela
e eu já estávamos curadas de nossas bobagens sem propósito que levei mais de um
ano para entender o que de facto fazia minha mãe me visitar quase que a cada
três semanas e insistir para explorarmos juntas as maravilhas da cidade. Tínhamos
começado visitando cada uma das várias faculdades, o que se revelara muito
divertido. Minha mãe não se cansava daqueles pátios e campanários góticos tão
diferentes do que via quando era pequena. Sempre que ela pensava que eu não
estava olhando, eu a via se abaixar e enfiar discretamente na bolsa pequenos souvenires:
uma pedrinha qualquer, um lápis largado sobre um degrau de pedra, um ramo de
tomilho de um jardim de ervas, e eu ficava quase constrangida ao constatar que,
depois de tantos anos, ainda sabia muito pouco sobre seu universo. Depois do
passeio pelas faculdades, começamos a frequentar concertos e eventos, entre os
quais um ou outro desportivo. Minha mãe de repente desenvolveu um estranho
interesse pelo críquete, depois pelo ragbi, e enfim pelo ténis. Eu deveria ter
percebido, é claro, que esses interesses aparentemente impulsivos eram na
verdade parte de uma campanha que sempre tivera um único objectivo. James». In
Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN
978-858-041-543-0.
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