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«Uma
coisa parecia certa: no dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta
e quatro, faltaria ainda um bom bocado para as sete da manhã, Celestino apertou
a cartucheira à cintura, enfiou a Browning a tiracolo, verificou o tabaco e as mortalhas,
esqueceu-se do relógio pendurado num prego que também segurava um calendário e saiu
porta fora. O céu começava a clarear. Ou talvez nem sequer tivesse começado a clarear.
Por cima das sopas de café com leite, Celestino emborcara, sem esforço, dois tragos
de bagaço. O primeiro, para a azia. O segundo, para os pensamentos cismáticos,
que ele, como, aliás, todos os traços fisionómicos sugeriam, era homem dado a prolongadas
melancolias. Por volta das onze horas da manhã, nenhum vento de mudança fora
ainda sentido por aqueles que viviam da cruel aritmética dos alqueires, dos cinchos,
das safras, das luas, das maleitas, das malinas, das geadas. Nos campos, homens
e mulas rasgavam a terra em irrepreensíveis geometrias, enquanto, na penumbra dos
currais, embaladas por ladainhas que os próprios lábios iam tecendo, as mulheres
atestavam as gamelas dos porcos, das cabras, dos filhos. E, se alguém tivesse o
desplante de interromper os seus laboriosos afazeres para lhes comunicar que, naquele
preciso momento, o Presidente do Conselho de Ministros de Portugal se encontrava
encurralado num quartel de Lisboa, cercado por soldados que exigiam a sua rendição,
o mais certo seria obter como resposta um olhar de absoluta indiferença.
É que
naquela pequena aldeia com nome de mamífero, encalacrada num sopé da Serra da
Gardunha, voltada para sul sem consciência de que estava voltada para sul, a única
excepção àquele total alheamento acerca dos destinos da pátria, como se a pátria
fosse um lugar longínquo, era a casa do doutor Augusto Mendes, onde, numa espécie
de gabinete de crise, se encontravam reunidas as suas mais ilustres personalidades:
Adolfo, Bocalinda, Larau, padre Alberto, Fangaias e, claro está, o anfitrião, o
doutor Augusto Mendes. Dona Laura, ao ver a casa encher-se de bocas, e pressentindo
que isso de golpes de Estado era coisa para levar o seu tempo, apressou-se, de
faca e alguidar, em direcção às capoeiras, donde regressou com as duas primeiras
vítimas da revolução. E ainda não tinham soado as duas da tarde quando, num exercício
ostensivo de poder, como se quisesse deixar bem claro que o que quer que estivesse
a acontecer no País, ali em casa tudo permaneceria na mesma, desligou o rádio e
a televisão, abriu as portadas que davam para o jardim e anunciou que a canja estava
na mesa.
Coma,
que a hortelã faz-lhe bem ao ânimo, disse ela ao padre Alberto, aquele que, de entre
os ilustres, se mostrava mais apreensivo com o desenrolar dos acontecimentos.
Não os acontecimentos políticos, que a política nunca lhe interessara. A César o
que era de César, e a Deus o que era de Deus. Interessavam-lhe os homens e as almas
dos homens, o que já não era coisa pouca. E, se era verdade que nunca nutrira especial
simpatia pelo doutor Oliveira Salazar, bem pelo contrário, a coisa mudava de figura
quando se tratava de Marcelo Caetano: o professor, o viúvo, o pai. O pai da menina
Ana Maria, essa jóia de moça. Porque era o pai da menina Ana Maria quem, desde
madrugada, se encontrava refugiado no quartel do Carmo, sabia-se lá em que
condições. Já não era o Presidente do Conselho de Ministros, muito menos o Ministro
das Colónias ou o Comissário da Mocidade Portuguesa. Era o pai da menina Ana
Maria. Um homem só, dizia o padre, um homem bom, um homem que se percebia que
andava cansado de acartar um império inteiro às costas.
No extremo
oposto da tribuna, encontrava-se o Larau, cujo ânimo, desde que nascera, permanecia
em constante exaltação, fossem revoluções, bilhares às três tabelas ou
procissões de sábado aleluia. E a visão da canjinha a fumegar não só lhe aguçara
o apetite, como lhe aprimorara o verbo. Assim, sempre que o nome Marcelo Caetano
vinha à baila, coisa que acontecia, pelo menos, de três em três minutos, o
Larau fazia questão de lhe acrescentar um majestoso e sonoro epíteto: pu… que o
pariu e filho de um granda cor… Ao que se seguia, perante o olhar severo de dona
Laura, um contrito Deus me perdoe, acompanhado do respectivo sinal da cruz». In
João Ricardo Pedro, O Teu Rosto Será o Último, Prémio Leya 2011, Leya, 2012,
ISBN 978-989-660-209-3.
Cortesia
de Leya/JDACT