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Ao contrário das cartas realmente manuscritas que nos chegaram da sua mãe, as
de Carlota Joaquina demonstram que ela conhecia bem a língua castelhana. A sua
ortografia não revela qualquer hesitação, e a sua sintaxe é de uma correcção e
clareza que ainda hoje é possível ler com agrado, uma vez que utilizava um
castelhano simples, mas muito expressivo. No entanto, com o tempo a sua língua
materna ir-se-ia misturando com formas de expressão e com palavras de origem
portuguesa. Uma vez acabado o estudo da gramática castelhana, a infanta começaria
a ter lições pertencentes ao capítulo intitulado Escola de Aritmética. E só
depois começaria a receber instrução religiosa. Esta hierarquia das disciplinas,
à primeira vista, poderia surpreender um pouco, uma vez que o seu professor era
um sacerdote e ela nada menos do que a neta do Rei Católico. Mas este é
igualmente um dado importante sobre a modernidade de critério da suposta educação
recebida pela infanta numa matéria que, devido às suas origens, devia ter uma
importância fundamental, e que é possível que tenha tido uma grande influência sobre
ela. Na realidade, até ao seu regresso do Brasil, as fontes falam de uma Carlota
nada supersticiosa, em matéria de religião.
Em todo
o caso, o modo racional, como ela aprendeu, possivelmente, essa disciplina nos seus
primeiros anos está muito bem expresso no título do capítulo dedicado a essa matéria:
breves fórmulas, com as quais as crianças poderão tornar as suas preces mais
simples, adaptadas das que a igreja prescreve para os Fiéis, mas postas em
linguagem vulgar, para que entendam o que oram até atingirem a idade de as
poder compreender na língua da própria Igreja. Um título que fazia referência
ao entendimento da oração era em si próprio uma declaração de princípios, sobre
os melhores aspectos do Iluminismo na sua versão espanhola, que aceitava que a razão
não tinha de entrar em competição com a tradição.
De algo
tão difícil como a formação do carácter ocupava-se outra parte do Método que tinha
como finalidade regular toda a conduta da criança, desde que se levantava até
que se deitava. Algo que para o temperamento de uma menina um pouco caprichosa,
como parece ter sido Carlota, podia ter uma grande importância. Evidentemente que,
a julgar pelos dados que existem sobre os seus primeiros anos na corte de
Lisboa, não parece que o ensino dessa parte do método tenha tido muito resultado
com ela. Não, pelo menos, como as lições de equitação e de dança, actividades nas
quais, sem dúvida alguma, a infanta sempre sobressairia.
Enquanto
prosseguiam muito lentamente as negociações matrimoniais para casar o infante João
com a arquiduquesa florentina, e a sua futura mulher continuava a ser educada por
uma eminência intelectual, a mãe desta voltava a sofrer mais um dos seus habituais
abortos, e em Portugal estava para ser emitida a sentença condenatória, mas muito
branda, do desterrado Pombal. Nesse mesmo ano (1781) morreu a tainha-viúva de
Portugal, dona Maria Ana Vitória, pelo que a candidatura encoberta de Carlota Joaquina
a mulher do infante João perderia uma das suas maiores defensoras. O destino da
candidata encoberta a casar-se com o infante também não se iria definir nos doze
meses seguintes, os mais vertiginosos na corte de Madrid do período em que Carlota
viveu nela, já que durante esses meses se produziu no seu seio uma importante intriga
dinástica, o que deverá ter influenciado notoriamente a sua forma de entender de
que maneira era possível conseguir o poder. O ano de 1782 tinha começado com um
sabor agridoce para a sua família, uma vez que o nascimento de uma nova infanta
ocorreu apenas quatro dias após a morte da infanta Maria Luísa, a irmã, que tinha
nascido depois de Carlota e com a qual se sentia mais afeiçoada.
No quarto
dos príncipes das Astúrias, como se chamava aos aposentos onde residiam os seus
pais, vivia-se igualmente um crescente estado de frustração, em primeiro lugar
devido ao delicado estado de saúde do infante Carlos Eusébio, único varão sobrevivente
ao fim de dezassete anos de casados dos seus pais. Em segundo, porque, não obstante
o apoio do conde de Floridablanca em relação ao matrimónio da infanta Carlota
com o infante português, Maria Luísa começava a pensar que a sua primogénita estava
a ser preterida em benefício da arquiduquesa florentina. Na realidade, naquele momento,
o nome desta era o único mencionado nas negociações que Floridablanca encetava com
o marquês de Louriçal, gentil-homem da câmara da rainha dona Maria, encarregado
de tais compromissos pela parte portuguesa». In Marsilio Cassotti, Carlota
Joaquina, O Pecado Espanhol, tradução de João Boléo, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-170-2.
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