sábado, 12 de março de 2011

Os Lusíadas. Prefácio: Luís de Camões. Parte III. «Camões recorda mesmo a pele bovina (IX.23) que, cortada em tiras finíssimas, fez o perímetro de Cartago, por indústria de Vénus. E de Ovídio não tem apenas o conhecimento das Metamorfoses. No início da Elegia III dá-nos um belo retrato moral de Ovídio desterrado...»

Cortesia de paulatravelho
No ano de 1572 foi feita a publicação dos Lusíadas 

Com a devida vénia à Biblioteca Digital Camões, Centro Virtual Camões, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Pimpão e Apresentação de Aníbal Castro.

Prefácio
A Elaboração do Poema
A primeira vez que Eneias é invocado é o «Troiano». Compara-o ao Gama; em II.45.5 lembra que o «piadoso» Eneias «navegou / de Cila e de Caríbdis o mar bravo»; em III.106.1-8 compara a tímida Maria implorando o favor do rei de Portugal a Vénus quando implora a Júpiter o favor para seu filho Eneias, navegando. Camões recorda mesmo a pele bovina (IX.23) que, cortada em tiras finíssimas, fez o perímetro de Cartago, por indústria de Vénus. E de Ovídio não tem apenas o conhecimento das Metamorfoses. No início da Elegia III dá-nos um belo retrato moral de Ovídio desterrado, em confronto com o seu caso pessoal:

O Sulmonense Ovídio, desterrado
na aspereza do Ponto, imaginando
ver-se de seus parentes apartado;
sua cara mulher desamparando,
seus doces filhos, seu contentamento,
de sua pátria os olhos apartando;
não podendo encobrir o sentimento,
aos montes e às águas se queixava
de seu escuro e triste nacimento.
O curso das estrelas contemplava,
como por sua ordem discorria
o céu, o ar e a terra adonde estava.
Os pexes pelo mar nadando via,
as feras pelo monte, procedendo
com o seu natural lhes permitia.
De sua fonte via estar nacendo
os saüdosos rios de cristal,
a sua natureza obedecendo.
Assi só, de seu próprio natural
apartado, se via em terra estranha,
a cuja triste dor não acha igual.
Só sua doce Musa o acompanha,
nos versos saüdosos que escrevia
e lágrimas com que ali o campo banha.
...............................................................

Cortesia de omba
E que leu dos prosadores? Plutarco, com certeza. Em grego? Conheceu a Bíblia. Dos geógrafos e naturalistas algum conhecimento teria. Pelo menos, cita-os em fiada:

Eu sou aquele oculto e grande cabo
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram, fui notório.

Acerca de Plínio parece não haver dúvidas.
Da história geral também não estamos bem informados. Utilizou a Enneades ou Rhapsodiae historiarum, de Sabélico, volumoso tratado que foi parcialmente traduzido em português por D. Leonor de Noronha, «prima co-irmã do amigo e protector do poeta D. Francisco de Noronha,  2.º conde de Linhares». Da tradução só são conhecidos os dois primeiros volumes, impressos em Coimbra (1.º, 1550; 2.º, 1553). A obra geral de Sabélico foi continuada por Paulo Jove e outros.
É notável a prontidão e a frequência com que o Poeta invoca paralelos para pôr em evidência os feitos dos Lusitanos ou os seus defeitos em relação a outros:

Codro, por que o inimigo não vencesse,
Deixou antes vencer da morte a vida;
Régulo, por que a pátria não perdesse,
Quis mais a liberdade ver perdida.
Este, por que a Espanha não temesse,
A cativeiro eterno se convida! 
Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto,
Nem os Décios leais fizeram tanto.
(IV.53.1-8)
Não matou a quarta parte o forte Mário
Dos que morreram neste vencimento,
Quando as águas co sangue do adversário
Fez beber ao exército sedento;
Nem o Peno, asperíssimo contrário
Do romano poder, de nascimento,
Que tantos matou da ilustre Roma,
Que alqueires três de anéis dos mortos toma;
E se tu tantas almas só pudeste
Mandar ao Reino escuro do Cocito,
Quando a santa cidade desfizeste
Do povo pertinaz no antigo rito,
Permissão e vingança foi celeste
E não força de braço, ó nobre Tito,
Que assi dos vales foi profetizado,
E despois por JESU certificado.
(III.116 e 117)
Do pecado tiveram sempre a pena
Muitos que Deus o quis e permitiu:
Os que foram roubar a bela Helena,
E com Ápio também Tarquino o viu;
Pois por quem David santo se condena?
Ou quem o tribo ilustre destruiu
De Benjamim? Bem claro no-lo ensina
Por Sarra Faraó, Siquém por Dina.

E, pois, se os peitos enfraquece
Um inconcesso amor desatinado,
Bem no filho de Almena se parece
Quando em Ônfale andava transformado.
De Marco António a fama se escurece
Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado.
Tu, também, Peno próspero, o sentiste,
Despois que ũa moça vil na Apúlia viste.
(III.140 e 141)

Teve muita influência no Poeta o poema Argonautica de Valério Flacco e talvez o de Apolónio Ródio. A partida dos mercantes de Belém é associada à dos Mínias:

Foram de Emanuel remunerados,
Por que com mais amor se apercebessem,
E com palavras altas animados
Pera quantos trabalhos sucedessem.
Assi foram os Mínias ajuntados,
Pera que o Véu dourado combatessem,
Na fatídica nau, que ousou primeira
Tentar o mar Euxínio, aventureira.
(IV.83)

Cortesia de purl 
Os Portugueses são os «segundos Argonautas» (IX.64). Não faltam as referências ao Veo (=Velo) dourado (III.72 e IV.83), nem à «rica pele de Colcos» (V.28) (10).
A partida das naus de Belém suscita ao Poeta este símile:

Elas prometem, vendo os mares largos,
De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos
(IV.85)

E a constelação Argo figura, entre outras, nestes versos:

Este, por sua indústria e engenho raro,
Num madeiro ajuntando outro madeiro,
Descobrir pôde a parte que faz clara
De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.
(VIII.71)

Dos poetas estrangeiros não pode negar-se-lhe o conhecimento de Petrarca, Ariosto, Tasso, Sannazaro, Garcilaso, Boscán. Teve de munir-se de livros auxiliares de estudo, como as Genealogiae deorum, de Boccacio, o Dictionarium poeticum, de Tormentino, a Officina, de Ravisio Textor, os Lectionum antiquarum libri triginta, de Célio Rhodigino.

Cortesia de conversamoswordpress 
Conhecia bem as lendas mitológicas e a história geral da Antiguidade, mas não é fácil determinar as suas fontes. Para além de Sabélico, que conheceu da história romana? Para a história geral dos tempos posteriores à queda do império romano ocidental – lembra Epifânio (11) –, valeu-se Camões dos trabalhos de vulgarização que já no seu tempo existiam, tais como: a Historia rerum ubique gestarum, de Eneas Silvio, o Catalogus annorum et principum, de Valerio Ryd, que chega até 1540, o De vitis ac gestis summorum pontificum, de Plátina, os Commentariorum libri, de Raffael Maffei de Volaterra, as Historie del mondo, de Tarchagnota. Os conhecimentos cosmográficos podem ter sido hauridos na enciclopédia que tem por título Margarita philosophica. A descrição do sistema do mundo ptolemaico foi
extraída do Tratado da Esfera, de Pedro Nunes (1537). Storck, referindo-se aos conhecimentos de Camões, escreve: «Os seus conhecimentos filosóficos derivam, quanto a pormenores, na aparência, da leitura de Diógenes Laércio, Plutarco, Cícero, Valério Máximo, Aulo Gélio, Plínio Sénior e das Antologias. Encontram-se a miúdo reminiscências destes escritores em passagens camonianas romanos que Camões manuseava frequentemente. As suas poesias são testemunho claro de como conhecia ditos e feitos de uma longa série de escritores ilustres: Homero, Aeliano, Xenofonte, Virgílio, Lucano, Ovídio, Horácio, Plauto, Lívio, Eutrópio, Justino, Ptolemeu e outros, ficando indecisa a questão se lia obras gregas no original». In Biblioteca Digital Camões, Centro Virtual Camões, Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Pimpão e Apresentação de Aníbal Castro.


Cortesia do Instituto Camões/JDACT