sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A Eternidade e o Desejo. Inês Pedrosa. «… um forno, um berço, um gesto de reconstrução do mundo. Um céu partido ao meio no meio da tarde, um céu despenhado, pedra a pedra, da voz deste homem…»

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«(…) Odeio-os, a esses conselheiros bondosos e às suas teorias do positivo e à auréola de tolerância que lhes envolve a garganta quando me incitam a que desabafe, que desabafar faz bem. Querem que além de cega seja santa, eruditamente santa, socialmente santa, que me porte bem, que aceite o carinho empenado pela piedade que têm para me oferecer. Podem chamar-lhe compaixão, socorrer-se da raiz etimológica de paixão partilhada, odeio-os. Pelo menos sou uma ceguinha má, dura de roer, imune às maviosas vozes da resignação. Preferia não ser este ouvido em que me transformei, Sebastião, preferia continuar a ser uma observadora. Gostava de olhar para as pessoas, às vezes até as seguia, ao acaso, só para as ver viver. Adestravam-me a benevolência, esses passeios, imaginava-me um anjo ocasional, puramente inútil, irmã dos anjos de As Asas do Desejo de Wim Wenders, que acompanhavam as pessoas como se andassem numa escola nocturna, a aprender só por aprender, despidos de ambições. Andava muito a pé, comprometida apenas com esse prazer da realidade inesperada. Mas espera, Sebastião, alguém, perto de nós, fala do padre António Vieira.
Dizes-me que vês uma excursão, um pouco à nossa frente, com uma etiqueta comum: o encontro do padre António Vieira. Cerca de trinta pessoas. Mais mulheres do que homens. E que o pretexto da viagem é o itinerário brasileiro do padre António Vieira. Digo-te que Vieira nunca é um pretexto, é sempre uma chamada. Digo-te que Vieira nos chama, pensarás que enlouqueci de vez e talvez estejas certo, pouco me importa. Peço-te que me conduzas ao responsável do grupo, hesitas, mas a uma cega nada se recusa, é esse o reverso da piedade, o inebriante poder que a piedade dos outros nos confere. Como hesitas ainda, Sebastião? Talvez tenha sobrestimado a tua piedade por mim. Esporo-te: o problema da tua vida não era o tédio? Então vá; mexe-te, que eu ajudo-te a acabar com ele. Depressa. Dizes que sou maluca. E perversa. Posso ser essa tua fantasia e tudo o que tu quiseres, desde que me faças a vontade, Sebastião. Preocupa-te que percamos o lugar, não percebes que eu já saí da fila, Sebastião, já não vejo as filas, e se me quiseres seguir acabarás por te perder também, Sebastião, creio que é mesmo esse desejo inconfessado de saltar para fora da fila o que te atrai em mim, precisas da minha mão de cega para isso, sozinho não tens coragem, olhas para o lado e vês o abismo. Mas não perderás o teu lugarzinho agora, Sebastião, as tuas malas cheias de camisas de algodão puro, impecavelmente dobradas, os teus guias turísticos, não te perderás neste instante, Sebastião, põe-me só à frente do responsável, deixa-me falar, tornei-me boa com as palavras, o buraco dos meus olhos é um rastilho de eloquência, comovo as pessoas mesmo antes de falar, extraordinário dom o meu, não te parece, Sebastião? (Avanço pela noite tacteando palavras. Lavrando antros. As esquinas do mundo concreto tornaram-se-me abstractas. Os passos contados. O assinalar dos ruídos. Uso as palavras como semáforos. Palaluzes. Palalavras. Palalantros. A voz de um homem acelerando a fúria dos anjos barrocos, abrindo-lhes fissuras nas barrigas, revelando o pó de que são feitos. A voz de um homem despedaçando o chicote dos homens que escravizam outros homens, vértebra a vértebra. A voz de um homem desbravando a fé nas palavras, fazendo de cada palavra uma catapulta, um forno, um berço, um gesto de reconstrução do mundo. Um céu partido ao meio no meio da tarde, um céu despenhado, pedra a pedra, da voz deste homem).
A Primeira pedra da funda de David atirada (ó Roma) à cabeça do Gigante, diz o nosso Purpurado Intérprete, que é o conhecimento de si mesmo. Cognitio sui. Grande pedra, e com razão a primeira; porque neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas acções é o conhecimento de nós mesmos. As obras são todas dos pensamentos; no pensamento se concebem, do pensamento nascem, com o pensamento se criam, se aumentam e se aperfeiçoam: e como os filhos recebem dos pais a natureza, o sangue e o apelido; assim se recebe do pensamento todo o bem grande e louvável, que resplandece nas obras. Daqui é, que querendo louvar David as obras maravilhosas de Deus, fez o panegírico aos seus pensamentos: multa fecisti tu Domine Deus meus mirabilia tua, et cogitationibus tuis non est que similis sit tibi. Sendo pois os pensamentos, e conceitos na mente do homem tantos, e tão diversos, justamente se pode duvidar de qual, ou quais dele sejam filhos as obras. Todos comumente cuidam, que as obras são filhas do pensamento ou ideias, com que se concebem as mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da ideia com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo. A primeira coisa e a maior que jamais se obrou, não no mundo, senão antes do mundo, foi a geração eterna do Verbo: e como foi, não feita, mas produzida, uma obra tão grande, tão imensa, tão portentosa e incompreensível? Não de outra maneira que do conhecimento de si mesmo». In Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-495-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT