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«(…) Nalguns casos, porém, o seu significado não é evidente. Tomemos, por
exemplo, o sentido dos prantos, das lamentações ou do recurso a carpideiras.
Aparentemente, e na interpretação moderna, trata-se de uma forma de exprimir
tristeza, de patentear emoções de aflição pela perda do morto. Um estudo mais
atento não confirma este sentido. Assim, as crónicas medievais, que acentuam
até ao paroxismo as manifestações de aflição por ocasião da morte dos reis, sugerem
que estas se destinam como que a esconjurar ou neutralizar a perturbação
cósmica e social que ela normalmente traz ou pode trazer à sua intensidade
deveria ser tanto maior quanto maior fosse a ameaça de perturbação trazida pela
morte. Sendo assim, trata-se, de novo, de uma forma de defesa contra a ameaça
de desordem e de desagregação que a perda de um membro traz ao grupo a que ele
pertencia como é evidente, a ameaça é tanto maior quanto mais importante era a
função que ele exercia no seio do grupo. Podem, decerto, interpretar-se no
mesmo sentido práticas tais como o silêncio que se impõe aos participantes nos
funerais, a abstenção de actividade sexual durante o luto, a condenação das
segundas núpcias da viúva, o toque dos sinos nas exéquias ou o fechar os olhos
dos recém-falecidos. O silêncio representa uma forma de paralisação da vida, ou
de concentração das forças vitais num momento em que a morte ronda a
comunidade. A abstenção de actividade sexual impõe-se para que ela, no momento
em que a morte se aproxima, em vez de transmitir a vida, não proporcione a
morte.
A condenação das segundas núpcias da viúva (como acontecia com as
rainhas dos Visigodos) destina-se a evitar a mesma eventualidade. O toque dos
sinos baseava-se na crença de que o seu timbre afastava os espíritos malignos
que acorriam junto dos cadáveres. O fechar os olhos dos recém-falecidos
decorria da ideia, especialmente evidente em lendas germânicas e nórdicas, de
que o seu olhar era mortífero. Em suma, os rituais das exéquias estão cheios de
elementos que se destinam a evitar a contaminação da morte e a garantir a manutenção
da vida da comunidade, afectada pelo desaparecimento de um dos seus membros. Os
rituais que procuram intervir positivamente no processo de passagem da vida
para a morte têm, em última análise, o mesmo sentido. Porém, resultam mais directamente
de crenças que não interpretam essa passagem como um processo imediato, mas
gradual.
A passagem seria como que uma viagem, e até uma viagem longa, cheia de
peripécias e de perigos. Estas crenças têm dois aspectos muito concretos: a de
que o espírito não abandona imediatamente o corpo depois da morte; e a de que o
morto só o é verdadeiramente quando termina a decomposição do cadáver e se
reduz a ossos. O perigo de perturbação dos vivos pelo morto torna-se, portanto,
especialmente grande durante esse período de transição. Impõem-se as preces
propiciatórias que lhe trazem o sossego, especialmente em fases consideradas
críticas, como ao fim do terceiro dia, do sétimo, do trigésimo, do quadragésimo,
ou do aniversário. Com efeito, relacionavam-se com estes períodos as fases de
decomposição do cadáver e de afastamento progressivo do espírito para o mundo invisível.
Tendia a identificar-se a redução a ossos com a entrada final do morto na
comunidade indiferenciada dos antepassados, em que ele, pelo menos em certas
culturas, perdia a sua identidade individual. Como é evidente, relacionam-se
com estas crenças os rituais em torno da exumação e trasladação dos ossos, o
culto das relíquias (que podem não ser só de santos, como acontece com as cabeças
de saludadores, à reunião de ossários (em que os esqueletos e as caveiras se
misturam numa multidão indiferenciada). O exame destas práticas, mais
frequentes e importantes em certas culturas, mostra que elas não têm nada de
macabro». In José Mattoso, Poderes Invisíveis, O Imaginário Medieval, 2001, Temas
e Debates, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-644-233-0.
Cortesia de TDebates/JDACT