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Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In
Villari
Maquiavel, o prisioneiro do
maquiavelismo
«(…) Para que os de Medici
saibam que, nada o ligando aos conjurados, a execução destes não lhe afecta sequer
a consciência, faz-lhes chegar às mãos aquele verso cínico: vadin in buona
ora. Sofrido o cárcere, eis uma natureza que a privação da liberdade moldara
e que se vai refinar agora, lançado ao desprezo, o ócio dando-lhe oportunidade,
os áureos tempos antigos apontando-lhe o horizonte, o imaginário de grandeza passada
tornando-o paradigma do cinismo na acção, a mofa uma forma de mentir com a verdade,
de confundir o mal que aconselha com a maldade de que parece mero observador. Tudo
surge a seu tempo. De homem de acção transforma-se em pensador, sendo a maioria
dos seus escritos anteriores relatórios das actividades diplomáticas.
Publicara, é certo, o que poderia passar por poesia pura, as suas primeiras Decenais,
sob o título de Nicolai Maclavelli florentini compendium rerum decennio in Italia
gestarum, 183 tercetos escritos em quinze dias, obra que era uma narrativa laudatória
dos acontecimentos vividos entre 1494 e 1504, estando o autor ao serviço do
governo de Soderini e do seu projecto de Ordinanza fiorentina.
O mundo mudara. A
política que servira não o quer. A pena é a sua companhia, a necessidade a sua única
virtude. Ante a tragédia, o sorriso. Há que escrever, mas, a anteceder qualquer
outra escrita. a que permita viver. É pela necessidade que, logo no dia 13, escreve
ao seu amigo Francesco Vettori (nasceu em 1474 e faleceu em 1139, sendo mais novo
do que Maquiavel. Conheceram-se no quadro da actividade diplomática de ambos e tornaram-se
amigos; trocaram uma longa série de epísto1as, sobretudo a partir do momento em
que o secretário caiu em desgraça; A leitura deste epistolário permite reconstruir
o perfil psicológico e o ambiente histórico em que o nosso autor viveu; cartas
de aparência severa e grave, elas escondem, como diria Maquiavel numa delas,
escrita a 31 de Janeiro de 1515, duas criaturas que, tal como a natureza, são variadas
na essência do seu ser), designado, desde 30 de Dezembro de 1512, embaixador (oratore)
da República junto da Cúria, em Roma, rogando-lhe que interceda por si e pelo irmão
Totto.
A vida havia-os separado. Vettori vive uma vida prestigiada, cortesã,
despreocupada, lamentando apenas a ociosidade e o ter de autoconter-se na sua postura
que, não fossem as conveniências, seria libertina e irresponsável; Machiavelli conhece
agora a penúria, o confinamento, a luta pelo pão, a ausência dos círculos onde se
morrera e de meios para gozar a boa vida, em breve estará retirado para a pobreza
rural, local onde tenta, escondendo a sua diminuída pessoa, salvar-se do desdém
com que outros o possam olhar. A carta é um acto de contrição, um lamento, uma forma
submissa de pedir. Maquiavel promete ser mais cauteloso e espera que os tempos
novos sejam mais liberais e menos suspeitosos. Roga que o irmão seja colocado entre
os familiares do papa de Medici e com isso beneficiado. Para si próprio suplica
que o sumo pontífice, ou os seus, o possam aproveitar em qualche cose. A
humildade no estender da mão mostra a que ponto a necessidade já enfraquece o
orgulho. Escreve de novo, cinco dias volvidos, ao seu amigo Magnifice Orator,
respondendo à missiva que, entretanto, recebera daquele a quem rogara ajuda e que,
cauteloso, se mostra parco em prometer (a carta de Francesco é um exemplo acabado
de refinada subtileza ante o infortúnio que não pode socorrer. Por um lado
anima-o, por outro distancia-se; Maquiavel, inteligente e habituado ao género,
deve ter compreendido a indisponibilidade do amigo e a hostilidade do meio em
que este se movia, mas responde, considerando a carta gratíssima, e amorosa, e,
num assomo de dignidade, deixa claro que viverá como puder, com os poucos meios
de que dispõe).
Sem possibilidade de subsistir na cidade, jogando na prudência de não
espicaçar a sorte, Maquiavel retira-se para a sua modesta propriedade em Sant’Andrea,
localidade de La Strada, na Percussina, junto a San Casciano in Val di Pesa, na
Toscana, enfrentando a paz agreste do exílio. Dali escreve, a 9 de Abril, uma nova
carta a Francesco, a qual assina, contristado, como Niccolò Machiavelli, quondam
Secret, (outrora secretário). É um Maquiavel desalentado, que se conformou
com não desejar coisa alguma com paixão, mas que tenta, com afectuosa cortesia,
não se mostrar excessivamente decaído na sua desgraçada fortuna». In
Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução
de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN
978-972-23-3951-3.
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