jdact
«Sabiam
os pontos cardeais,
as
estações do ano,
e que
a Lua viajava à volta da Terra,
enquanto
esta girava em torno do Sol.
E também
sabiam que a América estava neste mundo,
que a
Argentina era um país americano,
que
era uma república
e que
eles eram argentinos». In Eduardo
Holmberg.
A ilha
dos Guanacos
«No Inverno
desciam até ao mar. Chegavam esfomeados da montanha e durante um bom momento antes
de transpôr as últimas árvores os seus olhos brilhantes contemplavam a escuridão
da costa. A praia estava invariavelmente vazia, mas os guanacos tinham boa memória
e não davam um passo na areia até o sol despontar por completo dissipando o nevoeiro.
Então era possível que os guanacos topassem com um cachalote varado ou uma raposa
mexilhoeira, mas isto não lhes chamava a atenção mais do que o voo das procelárias
ou a fumarada de um barco. Os barcos mantinham-se à distância, mas era frequente
a ilha ficar toda coberta. As suas águas tinham muito má fama e ninguém, à excepção
dos ingleses, sabia ao certo a localização dos barcos afundados como O Voador
de Aberdeen ou a verdadeira profundidade do banco de Punta Salida ou
sequer se existia aquele banco. De qualquer modo, ao chegar a um certo ponto, os
barcos executavam uma cuidadosa manobra em direcção do mar, como se fosse ali que
estivesse o banco.
A presença
dos guanacos durava muito pouco, dado que no passado as suas piores
confrontações com os canaleses tinham-se registado naquela praia. Pastavam um
momento na costa e bebiam a água salgada, enquanto vigiavam as crias que costumavam
afastar-se da manada. A seguir enfiavam-se discretamente no bosque. Era então difícil
encontrá-los, embora de noite se ouvissem as suas risadas. A pessoa podia imaginá-los
a formar filas sob a neve, até que o frio acabava por silenciá-los. Depois
deixavam de dar sinais de vida, mas nas árvores subsistia o terror que deixavam
atrás de si. Quando um barco se afundava naquelas águas, quase não havia sobreviventes.
De vez em quando um ou outro afogado branco chegava à praia. Um afogado branco
era alguém fulminado por síncope ao cair na água gelada, sem tempo para dar um
único grito ou uma só mísera braçada. Também havia afogados azuis. Mas o normal
eram os afogados brancos. Essa gente tinha um aspecto terrível, nada de
semelhante aos afogados comuns.
De
qualquer modo, o South America Pilot não dispensava conselhos para o
caso de naufrágio e propunha todas as rotas possíveis para chegar até Abingdon.
Nos tempos do velho Dobson, a missão chegara a contar com mais de duzentos membros,
provenientes de todo o arquipélago. Segundo o Pilot, os missionários
faziam milagres com estas criaturas que eram dignas de toda a confiança. Só se tinha
de prestar atenção a um único detalhe: apenas os canaleses convertidos traziam consigo
o papelinho administrado pela missão que certificava a sua condição de amigos. Porém
a última edição do Pilot datava de 1902 e nessa altura os canaleses estavam
quase a ser apagados do mapa. Na missão já só restava a viúva do reverendo Dobson,
a qual desde a partida dos canaleses vivia à espera de um milagre que a retivesse
naquela terra. Cada barco que passava em direcção do Este renovava a sua
decisão de partir. A viúva apontava o seu óculo para o casco. Se o barco era argentino
ou chileno içava o pavilhão apropriado no mastro da missão; se fosse um barco inglês,
desfraldava a sua própria bandeira e içava-a, rogando para que o barco parasse
as máquinas e que assim isto trouxesse alguma mudança na sua vida». In Eduardo
Belgrano Rawson, Para lá da Terra do Fogo, 1991, 1999, Quetzal Editores, 2009,
Lisboa, ISBN 978-972-564-784-4.
Cortesia
de QuetzalE/JDACT