terça-feira, 29 de novembro de 2016

As Viúvas de dom Rufia. Carlos Campaniço. «De presenças fugazes, os soldados causavam sempre grande reverência às gentes do campo; era como se a República e os novos tempos acompanhassem a patrulha ocasional»

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«(…) Nisto, com a alentejana pronúncia de pôr graça até nas situações mais adversas, um dos presentes descuidou as palavras na língua: está visto que fica tudo em águas de bacalhau. De imediato se ouviu uma gargalhada gorda por cima da multidão. Ora, o viril cabo, disciplinador até no aprumo dos seus homens, determinou prontamente a prisão de Marcelino Piolho por não admitir zombarias com o seu nome, tampouco conclusões apressadas sobre a investigação. Do pó da multidão ficou apenas Armindo Costureira, imune às ordens do cabo. Armindinho, Armindinha, Costureira ou Costureirinha, todos os nomes na boca do povo lhe assentavam como as roupas femininas com que andava por casa: justas e de outra natureza. Numa terra de homens rudes, fingia-se um deles e punha seu colete e sua cinta, colonizando-se, e seu chapéu e sua jaqueta. Só os gestos mais pronunciados o denunciavam entre os demais homens daquele coro curioso. Tinha os olhos emudecidos, humedecidos também, preso à terra por um medo que não sabia descrever. O mando do cabo não chegou até si, porque as suas boas atenções estavam no passado vivido com o morto. Foi preciso um bom grito de um dos guardas e um aceno de indignação para que acordasse do seu letargo de saudades. Então lá foi, campo fora, que a aldeia se fazia escura, dando desacostumados passos em terra tão crua. Enquanto se afastava com sua jaqueta escura e o seu corpo magro, o cabo Catarino Bacalhau olhava-o a desaparecer-se entre os cabeços, fixando-lhe a melancolia. Naquele tempo, Fernão Baixo não tinha Guarda, pelo que os zelosos soldados vieram todos da vila de Moura, mandados chamar à pressa, visto ser coisa rara haver um morto matado nos chãos do concelho. De presenças fugazes, os soldados causavam sempre grande reverência às gentes do campo; era como se a República e os novos tempos acompanhassem a patrulha ocasional. Como o carteiro, que trazia pedaços de outros mundos dentro do saco, a Guarda trazia a esperança de que melhores tempos, por melhores ideias, estariam para chegar, ainda que se lhe notassem já alguns autoritarismos. Porém, naquele dia em que apareceram na aldeia com Marcelino Piolho preso de mãos, para o levarem para os calabouços de Moura, à custa de graça tão vulgar, os olhares e os modos não foram já os mesmos. Metia dó ver o Piolho atado ao rabo do cavalo com pavor das patas altas do bicho, coisa que um verdadeiro piolho ou afim na arte de parasitar certamente não teria. Dois guardas ficaram encarregados de fazer a vigília a dom Rufia até meio da noite, os outros dois cumpriram a outra metade, enquanto o cabo Bacalhau deitara seu rabo, que pelo que se pôde assistir não era de fiel-amigo, numa cama de ocasião nas acomodações da Junta de Freguesia. Os restantes dois soldados passaram a noite a vigiar o Piolho numa devoluta prisão da Guarda Real, um anexo da mesma casa da Junta de Freguesia. Se aquela fosse gente instruída, conhecedora das histórias dos homens desde a antiguidade, poderia ter pensado que a vigília militar ao cadáver era a mais inútil das acções desde os dias em que Ícaro tentara subir aos céus. Dir-nos-ia, com esta comparação de mostrar sabedoria, que dali não fugiria o morto, muito menos haveria quem o quisesse em sua própria casa. Esta afoiteza, por não ter existido, nunca chegou aos ouvidos do temido cabo. A casa do falecido que se abrira, de porta em par, para receber o velório sem morto tinha cada vez mais veladores, como era o hábito de então. Dom Rufia tinha uma irmã algures no mundo, mas esta e os seus pretensos filhos não o podiam chorar neste dia. Ela havia emigrado muito nova para lá do oceano, julgando-se estar em terras argentinas, mas não era isso certeza para uma teima. Assim, os únicos parentes do falecido eram os tios maternos, Homero Dente d'Alho e sua irmã Maria Teresina. À luz das velas, e apertados nas cadeiras que tinham trazido para a casa do morto, os rostos amarelados dividiam-se quanto à proveniência do tiro. De marido cabrão era a convicção geral, pois bem poucos achavam que fosse paga de negócio. Num desses instantes em que ninguém diz palavra e se pode ouvir o ruído do pensar alheio, um homem já de idade, que se esfregava de sono na face, disse qualquer coisa para se acordar e lamentou que, no dia da sua morte, se continuasse a chamar dom Rufia ao malogrado. Se Rufia fora nome bem merecido em vida, naquela fria posição campestre o homem devia designar-se apenas pelo nome próprio ou pela sua condição de morto». In Carlos Campaniço, As Viúvas de dom Rufia, 2016, Casa das Letras, Grupo Leya, 2016, ISBN 978-989-741-491-6.

Cortesia da CdasLetras/JDACT