sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650. Raquel Patriarca. «… em que o diálogo vai agonizando até fracassar definitivamente em 1541, durante a Conferencia de Ratisbona, e em 1545-1563…»

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O Contexto
A instalação do Tribunal do Santo Ofício
«(…) É verdade que já existe uma Inquisição Romana, dependente dos papas, que funciona ao longo de toda a Idade Média. Os bispos, detentores da autoridade eclesiástica, agem como guardiões da fé nas suas dioceses, procedem a Inquirições e dão julgamento aos delitos contra a religião. Mas o projecto de Manuel I é de outra natureza e tem outro alcance. O monarca Manuel I, ao pedir que o papa delegue em si competências que até então tinham sido do exclusivo foro eclesiástico e ao pedir para intervir em domínios que lhe eram teoricamente alheios, visava reforçar o seu poder em detrimento do poder papal, só assim se explicando que o papa resista o mais que pode. Em 1525, durante as Cortes de Torres Novas, reemergem as queixas e os protestos contra os cristãos-novos, apontando-os como responsáveis pela escassez de cereais e pela carestia e especulação daí resultantes. Volta também a já antiga acusação segundo a qual médicos e farmacêuticos cristãos-novos matavam deliberadamente os seus doentes cristãos-velhos, pelo que é pedido que lhes seja vedado o acesso a essas profissões e requerida a indagação da pureza de sangue. Pela mesma altura, dá-se o recrudescimento do Messianismo entre os conversos. A figura de David Rubeni, visionário que anuncia a chegada do tão esperado Messias, inflama os corações nas comunidades cristãs-novas, fazendo-lhes estalar por vezes o verniz de cristão fresco ao preludiar a vinda próxima do Messias e a renovação do reino de Judá. Em 1525, João III formula novo pedido de instalação da Inquisição (maldita) em Portugal, encetando-se assim um longo processo de negociações diplomáticas, entre Portugal e a Santa Sé. O desenrolar deste processo constitui uma morosa e complexa dança, na qual o monarca português e o papa vão valsando, mas não sozinhos. A cada compasso, temos por certo que delegações das comunidades cristãs-novas se movem junto da Santa Sé, com o intuito de lograr os objectivos da Coroa portuguesa.
O resultado deste processo, diz Bethencourt, não pode ser compreendido apenas através da análise da relação de forças estabelecidas entre os agentes régios e agentes dos cristãos-novos em Roma. Acerca das razões do monarca, Francisco Bethencourt afirma: a motivação mais profunda do rei dizia respeito à extensão da sua jurisdição numa área sensível, tradicionalmente controlada pelo papa. (…) Sem menosprezar as causas específicas, religiosas, sociais, do pedido de estabelecimento da Inquisição (maldita), decorrentes de pulsões arcaicas de tipo étnico, não podemos deixar de sublinhar que o pedido se insere numa estratégia de naturalização e estatização da Igreja, caracterizada pela intervenção crescente do poder régio na organização da hierarquia eclesiástica. Fazendo a análise na óptica da Igreja católica, Bethencourt aponta o contexto internacional como factor determinante. De um lado, no campo religioso, assiste-se ao movimento da Reforma protestante e à contra-reacção adoptada pela Igreja católica. Bethencourt fala-nos de um debate religioso que se estende pela Europa, em que o diálogo vai agonizando até fracassar definitivamente em 1541, durante a Conferencia de Ratisbona, e em 1545-1563, perante as determinações intransigentes de Roma resultantes do Concílio de Trento.
De outro lado, no campo geopolítico, (estando este aspecto intimamente associado ao anterior), assiste-se a uma alteração no que toca às relações de forças estabelecidas de longa data entre os estados europeus e a cúria romana. A própria Reforma, intensificada entre 1520 e 1540, vai minar o ascendente que a Igreja detinha diante do poder político. A afirmação da autonomia espiritual, desenvolvimento da política territorial e autoridade legitimadora dos soberanos, constituem prerrogativas que progressivamente perdem força. É perante a precariedade da posição do papa em relação à ruptura política e religiosa de uma parte da Europa Central e do Norte, que surgem as exigências do monarca português. Este, filho dilecto da cúria romana desde longa data, é um aliado constante e sólido e lidera um movimento expansionista que abre desde cedo grandes expectativas de missionação em novos continentes, alargando, por essa via, a influência da Igreja. A resposta chega sob a forma de três diplomas da cúria papal: em 1531, a bula Cum ad nihil magis; em 1536, o texto em que o papa estabelece em Portugal o tribunal do Santo Ofício da Inquisição (maldito), nomeia como primeiros inquisidores os Bispos de Coimbra, Lamego e Ceuta, a quem se juntaria um quarto inquisidor nomeado pelo monarca; e, em 1547, o documento que conclui o edifício jurídico iniciado anteriormente. Estava por fim em exercício, sem restrições, a fábrica destinada a depurar de heresias a nação contaminada». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2002.

Cortesia da UPorto/JDACT