domingo, 20 de novembro de 2016

O Cavaleiro de Olivença. João Paulo O. Costa. «Era uma tarde de Julho. A canícula apertava e o ar estava quase irrespirável. Um cavaleiro galopava por entre sobreiros. Um rasto de poeira assinalava a sua passagem apressada»

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O amigo da rainha
«(…) O espírito de Matilde perturbou-se. Está quase, pensou Antónia. Mas a amiga recompôs-se, enquanto revia seus tempos com Gonçalo.  Nem sempre consegui satisfazê-1o perfeitamente, mas entendemo-nos. Mas sabei que em meu grupo quem arrancava segredos na cama era Madalena. A anâ? Valia pela diferença e era muito habilidosa e insinuante, e quando a luz se apagava ela como que crescia. Como deveis ter percebido em vossa vida, quando chega a escuridão ou o espírito se nos tolda, a beleza deixa de contar, e Madalena era uma mulher extraordinária, apesar do tamanho. Antónia escutava atenta, e Matilde prosseguiu: Eu tratava das mezinhas. Adormeci imensos, fiz muitos dizerem o que não queriam e envenenei uns quantos, mas nunca vi meus alvos sob efeito de minhas poções. Isso era trabalho dos meus companheiros. Sempre às ordens de Vasco.
Sempre com seu conhecimento, mas também trabalhávamos para o duque Jaime e para seus parentes castelhanos, sobretudo o irmão, o conde Dinis. Foram quase vinte anos muito aventurosos. Hoje apercebo-me de que gostávamos do nosso ofício e que fomos um grupo bem-sucedido. Mas separaste-vos de vez, depois da Revolta das Comunidades? Sim, mas ainda antes, por alturas da morte de Vasco, ficámos sem um anão e o corcunda. Andámos perto de vinte anos no fio da navalha, e depois tornámo-nos demasiado conhecidos e nossos truques já não impressionavam suficientemente. Será que se Vasco estivesse vivo, a Revolta das Comunidades teria tido um final diferente? Se Vasco Melo tivesse estado em Tordesilhas no momento em que os Comuneros libertaram a rainha Joana, talvez a tivesse convencido a tomar decisões sozinha. E com um olhar malicioso, Matilde acrescentou: talvez vos tivesse abandonado para ficar junto da rainha. Infelizmente abandonou-nos mais cedo.
Agora era Matilde quem procurava satisfazer curiosidades antigas. Mas vós tínheis vosso feitor. Antónia sorriu. Matilde podia manter seus segredos, mas ela não carecia desse artifício. Bem sabes que, em sua enorme bondade, Vasco casou comigo só para eu poder viver meu amor sem perder o morgadio. Então ele poderia ter ficado com a rainha Joana. Aquele homem bom e doce merecia ter sido mais feliz do que foi, tal e qual a rainha Joana. A criada apareceu para avisar que a ceia estava pronta, e Antónia decidiu tentar uma última vez. E Luís? Nunca tentou seduzir-vos? Apesar de sua corcunda? Enquanto se esforçava para erguer o corpo cansado, Matilde cedeu interiormente. O que vale um bom segredo se não for contado a ninguém? Dona Antónia, eu conto-vos tudo durante a ceia. As duas senhoras tinham aberto a caixa das memórias e iam destrancar o baú dos segredos. O passado, que continuava presente em seus espíritos, ia ser revisitado durante horas, qual Pandora impossível de voltar a fechar.

O pedido da Rainha
Era uma tarde de Julho. A canícula apertava e o ar estava quase irrespirável. Um cavaleiro galopava por entre sobreiros. Um rasto de poeira assinalava a sua passagem apressada, mas a curta distância uma nuvem mais densa elevava-se igualmente nos ares. A montada transpirava e dava os primeiros sinais de fadiga, mas o homem esporava-a. Vamos, vamos. Só mais um esforço. Eles não vos vão apanhar! A paisagem ondulante exigia a subida de mais uma colina e o cavalo ainda teve forças para manter o ritmo acelerado. Quando atingiram o cimo, pararam momentaneamente; os perseguidores já estavam no sopé da encosta, a pouco mais de um tiro de besta, mas abaixo estava o leito de um rio que assinalava a sua salvação. Está quase. Do outro lado são terras de Portugal, e esses cães já não nos podem prender». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT