Ao
princípio eram os deuses…
O
harém de Amon…
«(…)
Tal como Karnak, Ipt-resit era dedicado não apenas a Amon, o senhor dos deuses,
representado na sua forma humana com duas grandes plumas na cabeça e o sexo erecto
do deus Min, simbolizando a sua força fecundadora, mas também à sua esposa Mut e
ao seu filho Khonsu. Mut, corpo de mulher e cabeça de abutre, tinha a coroa dupla
do Alto e do Baixo Egipto. Quanto a Khonsu, era venerado sob a sua forma
habitual: embrulhado num sudário e com o disco lunar na cabeça. No dia
indicado, sempre na mesma data do mês de Paochi, a estátua de Amon deixava, aos
ombros de uma centena de carregadores, a nave do grande templo e descia até ao Nilo
para tomar lugar na sagrada e multicolorida nave dourada. Seguiam-no Mut, depois
Khonsu e por fim o próprio faraó. Cada um dos membros da família sagrada era depositado
numa barca quase tão magnífica como a de Amon. O trono dourado do faraó ocupava
a popa. As quatro barcas divinas subiam então o Nilo até ao novo templo,
erguido num terreno sobre-elevado para fugir às cheias. Os deuses abandonavam então
as suas verdadeiras embarcações por navios simbólicos feitos de madeira dourada
e munidos de esticadores, aos quais se atrelavam os sacerdotes mais vigorosos. Ao
som dos tambores sagrados e dos cânticos religiosos, Amon, Mut, Khonsu e o faraó
eram então levados para as profundezas do templo, cujas portas de cedro
incrustadas a ouro se fechavam durante dez dias, ao mesmo tempo que cada uma das
barcas-cadeiras era guardada numa capela particular.
Tal
como na câmara dourada do Entemenanki, esperava-os uma mulher que dormira no templo
e que devia acolher no seu corpo o faraó, filho preferido de Amon-Ré e seu substituto
nas núpcias divinas, mulher que, dizia-se, não fizera comércio com mais nenhum
homem. O povo sonhava com o destino da criatura, que só podia ter uma beleza ideal
e que, após dez dias de amor com o deus, viveria apenas das suas recordações. De
facto, o papel de esposa divina pertencia a maior parte do tempo à própria
rainha do Egipto ou a uma das numerosas esposas que povoavam o imponente harém do
faraó, mas a Grande Esposa real podia estar grávida no momento da festa, levando
a que o faraó desejasse outra companheira. Calcula-se que o efectivo do harém de
um faraó por norma constituído fosse de mais ou menos trezentas e vinte mulheres.
Assim, a virgem, do templo podia ser uma das princesas estrangeiras cujos pais,
reis vencidos, enviavam para o Egipto para se tornarem esposas do faraó, caso da
princesa Tadukhipa, filha do rei Tushratta de Mitanni, que foi oferecida a Amen-hotep
IV (e que conheceu as dez noites de amor de Lucsor) e que alguns historiadores associaram
a Nefertiti, A Bela Chegou.
Uma vez
fechadas as portas, iniciava-se um cerimonial secreto, infinitamente mais complicado
e mais estranho do que o praticado nos zigurates mesopotâmicos. O faraó e a sua
esposa não caíam assim, sem mais nem menos, nos braços um do outro durante dez noites
e dez dias. O ritual exigia que a identificação dos reis com os deuses fosse completa.
Amon despia-se da sua divindade ao apoderar-se do corpo do faraó e este, no momento
em que se transformava em Amon, devia vestir o traje e os atributos do deus: o
toucado de plumas, a cruz ank, símbolo da vida, e o ceptro em forma de cabeça de
chacal. À sua volta os sacerdotes e as sacerdotisas cobriam os rostos com máscaras
representando as diversas divindades animais que escoltariam Amon ao leito real
para a consumação do casamento místico e carnal segundo o texto da lei sagrada.
Assim falou Amon-Ré, rei dos deuses, senhor de Karnak, supremo soberano de
Tebas, ao assumir a forma deste macho (aqui o nome do faraó em exercício), rei do
Alto e do Baixo Egipto, distribuidor da vida, ao encontrar a rainha quando ela
repousava no esplendor do seu palácio. O perfume suave do deus acordou-a e encantou-a.
Sua Majestade aproximou-se, apoderou-se dela, penetrou-a com o seu coração e revelou-lhe
a sua forma divina. A beleza do deus arrebatou-a e o amor espalhou-se-lhe por todos
os membros porque o odor e o bafo do deus cheiravam aos perfumes de Punt... A rainha,
honrada, devia mostrar-se reconhecida: que a tua força seja duas vezes grande!
Sublime de contemplar é o teu rosto quando me concedes a graça de te unires a mim.
O teu orvalho fecunda-me os membros... De uma maneira geral, a. festa da fertilidade
e as núpcias divinas culminavam com o nascimento de um príncipe ou de uma
princesa, filho ou filha de deus, sem que alguém se atrevesse a pôr em causa uma
tão augusta paternidade...» In Juliette Benzoni, Na Cama dos Reis,
Noites de Núpcias, 2010, tradução de Nuno Lorena, Planeta Manuscrito, Lisboa,
2012/2013, ISBN 978-989-657-351-5.
Cortesia de
PlanetaM/JDACT