quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A noite de Babilónia. Juliette Benzoni. «Tal como na câmara dourada do Entemenanki, esperava-os uma mulher que dormira no templo e que devia acolher no seu corpo o faraó, filho preferido de Amon-Ré e seu substituto nas núpcias divinas»

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Ao princípio eram os deuses…
O harém de Amon…
«(…) Tal como Karnak, Ipt-resit era dedicado não apenas a Amon, o senhor dos deuses, representado na sua forma humana com duas grandes plumas na cabeça e o sexo erecto do deus Min, simbolizando a sua força fecundadora, mas também à sua esposa Mut e ao seu filho Khonsu. Mut, corpo de mulher e cabeça de abutre, tinha a coroa dupla do Alto e do Baixo Egipto. Quanto a Khonsu, era venerado sob a sua forma habitual: embrulhado num sudário e com o disco lunar na cabeça. No dia indicado, sempre na mesma data do mês de Paochi, a estátua de Amon deixava, aos ombros de uma centena de carregadores, a nave do grande templo e descia até ao Nilo para tomar lugar na sagrada e multicolorida nave dourada. Seguiam-no Mut, depois Khonsu e por fim o próprio faraó. Cada um dos membros da família sagrada era depositado numa barca quase tão magnífica como a de Amon. O trono dourado do faraó ocupava a popa. As quatro barcas divinas subiam então o Nilo até ao novo templo, erguido num terreno sobre-elevado para fugir às cheias. Os deuses abandonavam então as suas verdadeiras embarcações por navios simbólicos feitos de madeira dourada e munidos de esticadores, aos quais se atrelavam os sacerdotes mais vigorosos. Ao som dos tambores sagrados e dos cânticos religiosos, Amon, Mut, Khonsu e o faraó eram então levados para as profundezas do templo, cujas portas de cedro incrustadas a ouro se fechavam durante dez dias, ao mesmo tempo que cada uma das barcas-cadeiras era guardada numa capela particular.
Tal como na câmara dourada do Entemenanki, esperava-os uma mulher que dormira no templo e que devia acolher no seu corpo o faraó, filho preferido de Amon-Ré e seu substituto nas núpcias divinas, mulher que, dizia-se, não fizera comércio com mais nenhum homem. O povo sonhava com o destino da criatura, que só podia ter uma beleza ideal e que, após dez dias de amor com o deus, viveria apenas das suas recordações. De facto, o papel de esposa divina pertencia a maior parte do tempo à própria rainha do Egipto ou a uma das numerosas esposas que povoavam o imponente harém do faraó, mas a Grande Esposa real podia estar grávida no momento da festa, levando a que o faraó desejasse outra companheira. Calcula-se que o efectivo do harém de um faraó por norma constituído fosse de mais ou menos trezentas e vinte mulheres. Assim, a virgem, do templo podia ser uma das princesas estrangeiras cujos pais, reis vencidos, enviavam para o Egipto para se tornarem esposas do faraó, caso da princesa Tadukhipa, filha do rei Tushratta de Mitanni, que foi oferecida a Amen-hotep IV (e que conheceu as dez noites de amor de Lucsor) e que alguns historiadores associaram a Nefertiti, A Bela Chegou.
Uma vez fechadas as portas, iniciava-se um cerimonial secreto, infinitamente mais complicado e mais estranho do que o praticado nos zigurates mesopotâmicos. O faraó e a sua esposa não caíam assim, sem mais nem menos, nos braços um do outro durante dez noites e dez dias. O ritual exigia que a identificação dos reis com os deuses fosse completa. Amon despia-se da sua divindade ao apoderar-se do corpo do faraó e este, no momento em que se transformava em Amon, devia vestir o traje e os atributos do deus: o toucado de plumas, a cruz ank, símbolo da vida, e o ceptro em forma de cabeça de chacal. À sua volta os sacerdotes e as sacerdotisas cobriam os rostos com máscaras representando as diversas divindades animais que escoltariam Amon ao leito real para a consumação do casamento místico e carnal segundo o texto da lei sagrada. Assim falou Amon-Ré, rei dos deuses, senhor de Karnak, supremo soberano de Tebas, ao assumir a forma deste macho (aqui o nome do faraó em exercício), rei do Alto e do Baixo Egipto, distribuidor da vida, ao encontrar a rainha quando ela repousava no esplendor do seu palácio. O perfume suave do deus acordou-a e encantou-a. Sua Majestade aproximou-se, apoderou-se dela, penetrou-a com o seu coração e revelou-lhe a sua forma divina. A beleza do deus arrebatou-a e o amor espalhou-se-lhe por todos os membros porque o odor e o bafo do deus cheiravam aos perfumes de Punt... A rainha, honrada, devia mostrar-se reconhecida: que a tua força seja duas vezes grande! Sublime de contemplar é o teu rosto quando me concedes a graça de te unires a mim. O teu orvalho fecunda-me os membros... De uma maneira geral, a. festa da fertilidade e as núpcias divinas culminavam com o nascimento de um príncipe ou de uma princesa, filho ou filha de deus, sem que alguém se atrevesse a pôr em causa uma tão augusta paternidade...» In Juliette Benzoni, Na Cama dos Reis, Noites de Núpcias, 2010, tradução de Nuno Lorena, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2012/2013, ISBN 978-989-657-351-5.

Cortesia de PlanetaM/JDACT