quarta-feira, 16 de novembro de 2016

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Um Príncipe não pode degenerar de seus antecessores. Se a Coroa a receber foi dada pela herança ou pela sorte, nada vale, conde. Tem de existir o valor a justificá-la»

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O Primeiro Voo do Falcão
«(…) De noite fazia as suas surtidas, com jovens da sua idade (e fê-las depois de casado), mas tudo isso à conta da juventude, da verdura dos anos e não constituía crime de grande importância. A viagem a Arzila tomou corpo e na alma juvenil do Príncipe passou a ser a ideia-chave de toda a sua vida, naquele momento. Queria cobrir-se de glória, combater o infiel, participar como elemento primordial na defesa da fé e na conquista militar da fortaleza. O conde de Monsanto tentou dissuadi-lo porque constitui um perigo que o herdeiro da Coroa afronte tal empresa, porque pode sucumbir e a sua morte arrastará o Reino e a sua independência para um perigo mortal. O jovem olhou-o fixamente. Esse olhar único que brotava daqueles olhos rasgados e negros, com uma luminosidade impressionante, seria uma arma terrível até ao fim dos seus dias para muita gente. Aquele rosto oblongo, branco, rosado, mais tarde emoldurado por uma curta barba negra e o cabelo castanho e muito liso, brilhante, aquele rosto indecifrável onde se abria um sorriso franco para as gentes honestas, embora raramente, faria tremer muitos dos que agora pululavam em volta daquele seu pai bondoso, irreflectido, bonacheirão e apaixonado, adorado, aliás, por uma Corte onde se considerava o primeiro entre os pares. Errado. Para o filho não havia pares para o Rei. O Rei estava no topo da pirâmide, independente, justiceiro, sem amarras que não fossem a vontade de Deus e a imparcialidade da justiça. Mas, por enquanto, ninguém sabia. Só ele, o jovem Príncipe que os mirava, esses fidalgos, muitos honestos e homens de honra, mas que tomavam liberdades para com o Monarca que ele jamais iria consentir. Com a sua voz fanhosa, retrucou: um Príncipe não pode degenerar de seus antecessores. Se a Coroa a receber foi dada pela herança ou pela sorte, nada vale, conde. Tem de existir o valor a justificá-la.
Boquiaberto, o conde Álvaro Castro calou e foi avisar o Rei. Este sucumbiu, como não podia deixar de ser, sob a forte pressão do filho. Vaidoso com o rapaz que prometia ser homem de palavra, honra e valentia. João despediu-se da mulher, jovem e tímida criatura que, de momento, sob a orientação da mãe e restante família, pouco se afoitava em expressar ideias que pudessem não satisfazer o cônjuge de dezasseis anos. Ficara com ela a irmã, Isabel, casada com o duque de Bragança, Fernando.
Afonso pensou primeiro avançar sobre Tânger, cuja conquista o obcecava, mas o Conselho e os Três Estados do Reino aconselharam-no a desistir da perigosa tarefa. Que fosse antes a Arzila. Afonso assentiu e preparou tudo. Enviou em segredo o seu escrivão da fazenda Pero Alcáçova e Vicente Simões, agora na posse de nova documentação sobre os pormenores da costa, em quem confiava totalmente, pois falavam árabe e conheciam bem a geografia do Norte de África, como mercadores, bisbilhotar a Arzila. Assim cumpriram o mandato o melhor que souberam. Aparelhou-se a armada. Dona Leonor ficou como Regente e o duque de Bragança como presidente do Conselho. O Rei teve ainda de esconjurar as desavenças provocadas pelas invejas e quezílias entre certos senhores, avisando-os que o não acompanhariam se não fizessem as pazes. Só aos condes foi permitido levar cavalos dentro dos barcos. Do Porto saiu uma parte das embarcações sob o comando do duque de Guimarães, filho do duque de Bragança, também de nome Fernando e, logo que chegou a Lisboa, juntou-se à armada do Rei, no Restelo, a 15 de Agosto de 1471. No dia 17 chegou a frota à vila de Lagos, onde se achava já pronta a armada do Reino do Algarve, sob a orientação do conde de Viana, Duarte: os navios de carga, naus grossas, galeões, galés, fustas, trezentas e trinta e oito velas, gente de guerra e experimentada gente de marinhagem. Vinte e quatro mil homens». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

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