jdact
O Primeiro Voo do Falcão
«(…) De noite fazia as suas surtidas, com jovens da sua idade (e fê-las
depois de casado), mas tudo isso à conta da juventude, da verdura dos anos e não
constituía crime de grande importância. A viagem a Arzila tomou corpo e na alma
juvenil do Príncipe passou a ser a ideia-chave de toda a sua vida, naquele
momento. Queria cobrir-se de glória, combater o infiel, participar como
elemento primordial na defesa da fé e na conquista militar da fortaleza. O conde
de Monsanto tentou dissuadi-lo porque constitui um perigo que o herdeiro da
Coroa afronte tal empresa, porque pode sucumbir e a sua morte arrastará o Reino
e a sua independência para um perigo mortal. O jovem olhou-o fixamente. Esse
olhar único que brotava daqueles olhos rasgados e negros, com uma luminosidade
impressionante, seria uma arma terrível até ao fim dos seus dias para muita
gente. Aquele rosto oblongo, branco, rosado, mais tarde emoldurado por uma
curta barba negra e o cabelo castanho e muito liso, brilhante, aquele rosto
indecifrável onde se abria um sorriso franco para as gentes honestas, embora
raramente, faria tremer muitos dos que agora pululavam em volta daquele seu pai
bondoso, irreflectido, bonacheirão e apaixonado, adorado, aliás, por uma Corte
onde se considerava o primeiro entre os pares. Errado. Para o filho não havia pares
para o Rei. O Rei estava no topo da pirâmide, independente, justiceiro, sem
amarras que não fossem a vontade de Deus e a imparcialidade da justiça. Mas,
por enquanto, ninguém sabia. Só ele, o jovem Príncipe que os mirava, esses
fidalgos, muitos honestos e homens de honra, mas que tomavam liberdades para
com o Monarca que ele jamais iria consentir. Com a sua voz fanhosa, retrucou: um
Príncipe não pode degenerar de seus antecessores. Se a Coroa a receber foi dada
pela herança ou pela sorte, nada vale, conde. Tem de existir o valor a
justificá-la.
Boquiaberto, o conde Álvaro Castro calou e foi avisar o Rei. Este sucumbiu,
como não podia deixar de ser, sob a forte pressão do filho. Vaidoso com o rapaz
que prometia ser homem de palavra, honra e valentia. João despediu-se da
mulher, jovem e tímida criatura que, de momento, sob a orientação da mãe e
restante família, pouco se afoitava em expressar ideias que pudessem não
satisfazer o cônjuge de dezasseis anos. Ficara com ela a irmã, Isabel, casada
com o duque de Bragança, Fernando.
Afonso pensou primeiro avançar sobre Tânger, cuja conquista o obcecava,
mas o Conselho e os Três Estados do Reino aconselharam-no a desistir da perigosa
tarefa. Que fosse antes a Arzila. Afonso assentiu e preparou tudo. Enviou em
segredo o seu escrivão da fazenda Pero Alcáçova e Vicente Simões, agora na posse
de nova documentação sobre os pormenores da costa, em quem confiava totalmente,
pois falavam árabe e conheciam bem a geografia do Norte de África, como
mercadores, bisbilhotar a Arzila. Assim cumpriram o mandato o melhor que
souberam. Aparelhou-se a armada. Dona Leonor ficou como Regente e o duque de
Bragança como presidente do Conselho. O Rei teve ainda de esconjurar as
desavenças provocadas pelas invejas e quezílias entre certos senhores,
avisando-os que o não acompanhariam se não fizessem as pazes. Só aos condes foi
permitido levar cavalos dentro dos barcos. Do Porto saiu uma parte das
embarcações sob o comando do duque de Guimarães, filho do duque de Bragança,
também de nome Fernando e, logo que chegou a Lisboa, juntou-se à armada do Rei,
no Restelo, a 15 de Agosto de 1471. No dia 17 chegou a frota à vila de Lagos, onde
se achava já pronta a armada do Reino do Algarve, sob a orientação do conde de
Viana, Duarte: os navios de carga, naus grossas, galeões, galés, fustas,
trezentas e trinta e oito velas, gente de guerra e experimentada gente de
marinhagem. Vinte e quatro mil homens». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia de EPresença/JDACT