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«(…) Se o velho fechava os olhos ao vício
da caça, porque os coelhos e as perdizes que o filho matava compensavam de sobra
a despesa dos cartuchos, não lhe perdoaria se viesse a saber que ele andava
pelas tabernas a esbanjar dinheiro em rodadas. Ou que perdia tempo em namoros.
Um Cavaleiro esse o apelido que os Carvalhos do Cabeço e de Carviçais tinham
herdado de um longínquo antepassado de Mós, meio fidalgo pobretanas para uns,
salteador na boca doutros, um Cavaleiro mourejava, apalavrava casamento com uma
rapariga de gente boa, tinha filhos, respeitava Deus, não fazia dívidas, não
pedia favores a ninguém.
Namorada já ele arranjara, mas ao rapaz
generoso e festejeiro que era, o saco de trigo desviado de vez em quando e a
venda, à socapa do pai, de algum coelho ou perdiz, não devem ter parecido perspectivas
de futuro que valesse a pena. Infelizmente, para o negócio não tinha jeito e ir
à jeira para alguém que lhe pagasse em contado estava fora de questão: nem o orgulho
lho consentiria, nem o pai ia deixar que lhe fugissem os braços de que
precisava para a lavoura. Tanto mais que a mulher e as duas filhas mal podiam
com a lida da casa e do gado, e o outro rapaz, que era mole da cabeça, só
servia para pastorear as ovelhas. Se tivesse vocação e um espírito obediente,
poderia ter achado remédio no seminário, que dava cama, mesa, educação e a
garantia de uma vida de conforto. Mas inquieto de nascença, quando em 1880 lhe
chegou a obrigação de assentar praça, foi de abalada à longínqua Lisboa para se
alistar na Marinha. E lá, para seu desconsolo, não o quiseram, dando-lhe por razão
que quem só tinha calcorreado montes nunce conseguiria ganhar pé de marinheiro.
Adeus sonhos de navegação e viagens ao Oriente.
Resignou-se à tarimba de Infantaria num
regimento do Porto. Soldado raso. Má vida, mas melhor e mais sua do que a que
teria sob o jugo do pai a trabalhar de sol a sol, porque voltar, e isso tinha-o
com certeza decidido logo, nunca mais voltaria. Nos fins do ano, talvez, pelo
Natal. Ou no Verão, para as festas e a caça. Da sua história desse tempo só ficaram
testemunhos orais, nem todos fidedignos. É pouco provável que, sem saber nadar,
se tenha atirado ao Douro para acudir a uma mulher. Também deve ser fábula que,
durante uma das frequentes revoluções de então, tenha tido o sangue-frio de, antes
de ela explodir, arremessar de volta para o inimigo uma granada que caíra na
sua trincheira. Mas descontadas as fantasias dos parentes e amigos, não resta
dúvida que era corajoso, pois o condecoraram por ter salvo uma família num incêndio,
e ganhou um louvor na ordem do dia pela abnegação que demonstrara ao ajudar os
náufragos dum navio encalhado nos penedos da Foz. Como era quase geral para
quem nascera nos montes, não tinha aprendido a ler nem a escrever, e ao seu
orgulho deve ter pesado o estigma. Não lhe escapou também que, na vida complexa
da cidade, o analfabeto só encontrava lugar nos degraus mais baixos da escala
social.
Sem oportunidade nem dinheiro para
frequentar a escola, usando uma cartilha que o capitão lhe tinha dado, ensinou-se
ele próprio as primeiras letras. Comprou depois pena e tinteiro, uma caixa de
aparos, um caderno, e morosamente foi desenhando as letras. Momentos de alegria
tão intensa que nunca ele se cansaria de os evocar e, contados por outros durante
os serões da minha infância, ganhavam um simbolismo lendário. Apurou-se na
leitura e na escrita, e de tal modo o maravilhou a descoberta que pela vida
fora lhe continuaria crescendo a paixão pelos livros e o saber. Embora o pré
fosse uma miséria, cuidava de pôr de lado o bastante para comprar o jornal ao
domingo, que tinha mais páginas e suplementos». In José Rentes de Carvalho,
Ernestina, 2001, Quetzal Editores, Lisboa, 2009, 2014, ISBN 978-989-722-171-2
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