«Graças à documentação
fotográfica e às declarações agora numerosas fornecidas por ex-internos dos
vários Campos de concentração criados pelos alemães para a aniquilação dos
judeus da Europa, talvez já não exista ninguém que ainda ignore o que foram
esses lugares de extermínio e as torpezas que lá foram praticadas. No entanto,
com a finalidade de dar a conhecer melhor os horrores, dos quais nós próprios
também fomos testemunhas e muitas vezes vítimas durante o período de um ano,
acreditamos ser útil trazer a público em Itália um relatório que apresentámos ao
governo da U.R.S.S., por solicitação do Comando Russo do Campo de Concentração
de Kattowitz para italianos ex-prisioneiros. Foi neste Campo que também nós
ficámos abrigados após a nossa libertação, efectuada pelo Exército Vermelho em
finais de Janeiro de 1945. Acrescentamos agora a essa exposição algumas
informações de ordem geral, pois o nosso relatório da altura devia
restringir-se exclusivamente ao funcionamento dos serviços sanitários do Campo
de Monowitz. O mesmo governo de Moscovo solicitou relatórios análogos a todos
os médicos de qualquer nacionalidade que, vindos de outros campos, também tivessem
sido libertados.
Partimos do Campo de concentração
de Fossoli di Carpi (Módena) em 22 de Fevereiro de 1944, num comboio com 650
Judeus de ambos os sexos e de todas as idades. O mais velho passava dos oitenta
anos, o mais novo era um bebé de três meses. Muitos estavam doentes, alguns
gravemente: um velho de setenta anos, que tivera uma hemorragia cerebral poucos
dias antes da partida, foi igualmente embarcado e morreu durante a viagem.
O comboio era composto apenas por
vagões de transporte de gado, fechados pelo lado de fora; em cada vagão, foram
amontoadas mais de cinquenta pessoas, a maior parte das quais levava consigo todas
as malas que conseguia, porque um primeiro sargento alemão do Campo de Fossoli
tinha-nos sugerido, com ar de quem dava um conselho desinteressado e afectuoso,
que nos provêssemos de muitas roupas pesadas, camisolas de malha, cobertores,
peliças, porque seríamos levados para regiões com um clima mais rigoroso do que
o nosso. E acrescentara, com um sorrisinho benévolo e uma piscadela de olho
irónica, que, se alguém tivesse dinheiro ou jóias escondidas, faria bem em
levá-los também, pois lá seriam certamente úteis. A maioria dos que partiam
mordeu o isco, seguindo um conselho que escondia uma armadilha grosseira;
outros, pouquíssimos, preferiram confiar os seus bens a algum particular com
livre acesso ao Campo; outros, por fim, que no acto da detenção não tinham tido
tempo de providenciar mudas de roupa, partiram apenas com o que vestiam.
A viagem de Fossoli para
Auschwitz durou exactamente quatro dias; e foi muito penosa, sobretudo por
causa do frio, que era tão intenso, especialmente nas horas nocturnas, que de manhã
as tubagens de metal que percorriam o interior dos vagões estavam cobertas de
gelo, devido ao vapor da respiração que se condensava sobre elas. Outro
tormento era a sede, que só podia ser saciada com a neve recolhida durante a única
paragem diária, quando o comboio se detinha em campo aberto e os viajantes eram
autorizados a descer dos vagões, sob a rigorosíssima vigilância de inúmeros
soldados, prontos, com a metralhadora sempre apontada, a abrir fogo contra quem
quer que fizesse menção de se afastar do comboio.
Era durante essas curtas paragens
que se procedia, vagão a vagão, à distribuição dos alimentos: pão, doce e queijo;
nunca água ou qualquer outro líquido. As possibilidades de dormir eram
reduzidas ao mínimo, pois a quantidade de malas e trouxas que se amontoavam no
chão não permitia que ninguém se ajeitasse numa posição cómoda e propícia ao
descanso; os viajantes deviam, portanto, contentar-se em ficar acocorados da
maneira que lhes custasse menos num espaço muito reduzido. O soalho dos vagões
estava sempre molhado e não era fornecido sequer um pouco de palha para o
cobrir». In Primo Levi, Assim foi Auschwitz, 2015, Penguin Randon House Grupo
Editorial, Objectiva, 2015, ISBN 978-989-877-569-6.
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