«(…) Quando a minha mãe voltou, eu estava sentada, usando a
máquina de legumes. Aguardei que ela falasse. Ela estava com os ombros
encolhidos como se enfrentasse um frio de Inverno, embora fosse Verão e a cozinha
estivesse quente. Amanhã começas como criada deles. Se for bem, vais receber
oito tostões por dia. Vais morar lá. Apertei os lábios. Não me olhes assim,
Griet. Temos de fazer isso, agora que o teu pai perdeu o ofício. Onde eles
moram? Na Oude Langendijck com a Molenpoort. Na Esquina dos Papistas? São
católicos? Podes vir para casa aos domingos. Eles concordaram. Minha mãe juntou
os nabos com um pouco de repolho e cebola e jogou tudo na panela com água, no
fogo. Acabaram-se as fatias de torta que eu havia arrumado com tanto cuidado. Subi
a escada para ver o meu pai, sentado à janela da frente do sótão, com o sol
batendo no seu rosto. A luz era o máximo que ele podia enxergar. O pai tinha
sido pintor de azulejos, os seus dedos ainda estavam manchados de azul, de
pintar cupidos, donzelas, soldados, navios, crianças, peixes, flores, animais
em azulejos brancos, vitrificando-os, secando-os no forno e vendendo-os. Um
dia, o forno explodiu e lá se foram os olhos e o ofício. Teve sorte: dois
homens morreram. Sentei-me ao seu lado e segurei a mão dele. Ouvi, ouvi tudo,
disse ele, antes que eu falasse. A audição tinha substituído a visão que lhe
faltava.
Não consegui pensar em nada que não parecesse acusação.
Desculpa, Griet, gostaria de ter feito melhor por ti. O lugar onde ficavam os seus
olhos, onde o doutor havia costurado a pele, parecia triste. Mas ele é um bom
cavalheiro e educado. Vai cuidar bem de ti. O pai não disse nada sobre a
mulher. Como pode ter a certeza, pai? O senhor conhece-o? Não sabe quem ele é? Não.
Lembras-te do quadro que vimos na prefeitura, alguns anos atrás, que van
Ruijven estava expondo depois que o comprou? Uma paisagem de Delft, dos portões
de Roterdão e Schiedam, com o céu, que tomava grande parte do quadro e a luz do
sol batendo em algumas construções. A tinta tinha areia para que tijolos e tectos
parecessem ásperos, acrescentei. E havia longas sombras na água e pessoas
pequenas na praia mais próximas de nós. Esse mesmo. As órbitas do pai se esticaram como se ainda tivessem olhos e vissem
o quadro outra vez. Lembrava-me bem, eu estivera várias vezes naquele lugar e
nunca vira Delft como o pintor.
Aquele homem era van Ruijven? O mecenas? Não, não, filha. É
o pintor Vermeer. Johannes Vermeer e a esposa. Você vai trabalhar como criada
no atelièr dele. Minha mãe colocou mais uma touca, uma gola e um avental
nas poucas coisas que eu estava levando, de modo que todo dia eu pudesse lavar
um e usar o outro, e estar sempre limpa. Ela me deu também um pente de
tartaruga para enfeitar o cabelo, em forma de concha, que tinha sido de minha
avó, muito fino para uma criada usar, e um livro de orações que poderia ler
quando precisasse fugir do catolicismo à minha volta. Enquanto juntávamos as minhas
coisas, ela explicou por que eu precisava trabalhar com os Vermeer. Sabias que o
teu novo patrão é chefe da guilda de São Lucas desde que seu pai sofreu o
acidente, no ano passado? Concordei, ainda assustada por ter de trabalhar com tal artista.
A guilda funciona do jeito que dá. Lembras-te daquela caixa
onde o teu pai depositou dinheiro todas as semanas, durante anos? Esse dinheiro
vai para mestres necessitados, como nós estamos. Mas é pouco, principalmente
agora que Frans está como aprendiz e não recebe nada. Não temos outra saída.
Não queremos caridade pública, pelo menos nos esforçaremos para não aceitar. O
seu pai soube que o seu novo patrão estava precisando de uma criada para limpar
o atelièr sem tirar nada do lugar e então sugeriu o teu nome, achando
que, como chefe da guilda e sabendo da nossa situação, Vermeer tentaria ajudar.
Pensei em tudo que ela havia dito e perguntei: como se limpa um lugar sem tirar
nada?» In Tracy Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, 1999, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-957-8.
Cortesia de BertrandB/JDACT