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A
sobrevivência destes cavaleiros até finais da Idade Média mostra que nem toda a
cavalaria vilã se diluiu no sistema dos aquantiados, ao contrário do que
defendeu Gama Barros. Nalgumas vilas da Estremadura, pelo menos, os antigos
cavaleiros vilãos souberam manter muito daquilo que os distinguia dos peões e
os afirmava como cavaleiros no espaço dos concelhos respectivos. Como se viu,
essa resistência não se fez sem algumas concessões, nem sem alguma degradação
de estatuto, mas não é fácil explicar, com os dados disponíveis, o que
determinou o sucesso destas comunidades na defesa dos seus costumes, enquanto
outras se rendiam ao sistema das quantias e aos critérios de hierarquização
social que daí decorriam. Ainda que a história dessa resistência esteja em boa
parte por fazer, é provável que ela tenha sido favorecida pela integração
dessas comunidades em concelhos de senhorio particular, onde a acção da Coroa
se fazia sentir, por certo, com maior dificuldade. De resto, não é de todo
impossível que a sua luta tenha contado com a conivência, ou com o silêncio,
pelo menos, dos alcaides nomeados pelos senhorios, os quais tinham algo a
perder com a generalização do sistema das quantias. Além de abdicarem das
ofertas regulares de alguns frangões, ou de uns quantos tarraços de vinho,
também prescindiriam do seu anterior protagonismo na recepção dos novos
cavaleiros, que lhes dava um ascendente decisivo sobre a milícia do concelho.
A
interferência da Coroa no recrutamento dos cavaleiros dos concelhos, de modo a
controlar o processo e a restringir a isenção fiscal aos que tivessem cavalo e
armas para o serviço do rei, é muito anterior às disposições de Afonso IV, que
ficaram citadas na carta que derrogou os privilégios dos cavaleiros de carneiro
em Alcanede. Na realidade, desde Maio de 1305 que Dinis I tinha reservado para
a Coroa o direito de conferir a honra de cavalaria aos vizinhos das cidades e
de os privilegiar, por essa via, com a isenção de direitos régios e concelhios.
Contra essa novidade protestou o concelho de Lisboa, em Setembro desse mesmo
ano, lembrando que cabia ao alcaide o costume de fazer os cavaleiros da cidade
durante o mês de Maio, os quais eram aceites como tais pelos monarcas
anteriores. Não teve, contudo, grande sucesso. Por volta de 1317, já o monarca
tinha chamado a si a condução de todo o processo, estabelecendo o novo sistema
de quantias, mandey que tevesedes cavalos aqueles que as contias avyades
segundo era conteudo nas cartas que vos sobre esto mandey, como recordou
numa carta dirigida ao concelho de Lisboa. Nessa mesma ocasião, por entender
que poys avedes de teer cavalos que me compre muyto de teerdes com eles
armas, fixou o equipamento militar doravante exigido aos cavaleiros de
diversas quantias, tendo responsabilizado o concelho pela escolha de veedores
pera fazer teer os cavalos e para verificar a posse das armas respectivas.
Mais esclarecia que assim o decidira, porque em outra guisa nom mi
poderiades servir como devyades de sy seeria a vos perigoo.
O novo
sistema estava, portanto, montado e a Coroa não deixará de insistir na
necessidade de articular as isenções fiscais com a posse de cavalo e de armas.
Os funcionários régios cedo começaram a exigir jugada aos cavaleiros que
utilizavam as suas montadas em trabalhos agrícolas, ou em feitos de
almocreveria, tal como ocorreu em Penacova, em Setembro de 1317, embora esse
fosse um costume aceite em muitas vilas da Estremadura. Nas Cortes de Santarém
de 1331, fez-se ouvir o protesto de alguns concelhos contra o facto de se
exigirem montadas de certa quantia a quem estava dispensado de jugada, quando o
seu próprio foro isentava desse tributo aqueles que tivessem um cavalo. A resposta
de Afonso IV foi breve, mas desfez todos os equívocos, lembrando que isso seria
strago da terra e mingua e uergonça, porque a jugada não lhes fôra
quitada por teerem tal caualo com que nom podesen seruir nem defender a
terra. Nem sempre estas disposições da Coroa seriam postas em prática com
muita facilidade. Em muitos casos, não era fácil distinguir os cavaleiros de
carneiro dos de quantia, sobretudo quando aqueles possuíam uma boa montada e
alguns apetrechos militares. Talvez fosse essa a situação descrita em Tomar, em
Abril de 1385, como já atrás se indicou. Noutras localidades, as dificuldades
podiam nascer de um uso diverso das montadas, como o monarca autorizara que se
fizesse em Penacova, por sentença de Setembro de 1317. De acordo com o protesto
levado às Cortes de 1331, ocorria algo de semelhante em Santarém, onde os
cavaleiros eram penhorados pela jugada por andarem em bestas muares, embora
dissessem servir o rei com cavalo e armas. Apesar dos esforços da Coroa, o
carácter híbrido destas situações acabava por favorecer, afinal, a defesa dos
antigos costumes, como que justificando as referências aos cavaleiros de carneiro
que se lêem nalguns capítulos de Cortes do reinado de Fernando I e que se
rastreiam, ainda, noutros textos de épocas mais tardias.
Nas
vilas de Arruda e de Alcanede, a execução das cartas de Agosto de 1390 e de
Novembro de 1424 também conheceu diversas contrariedades. Em Alcanede, a
oposição do concelho obrigou o mestre de Avis a ganhar uma nova carta régia, em
Setembro de 1390, sem que isso o dispensasse de assegurar a posse de treslados
fiéis desses documentos, talvez devido aos entraves postos pelo concelho em
diversas ocasiões. A reacção dos vizinhos de Arruda foi ainda mais decidida na
defesa da honra e dos privilégios fiscais dos seus cavaleiros. Os dados
disponíveis não permitem reconstituir os meandros desse confronto, nem conhecer
os meios a que o concelho recorreu para obstar à aplicação da carta de 1424,
mas é provável que esta nunca tenha sido cumprida. A suspeita de João I tinha,
portanto, algum fundamento, quando ressalvou a existência de um pacto
particular na carta que outorgara ao Infante.
O recuo da
Ordem foi reconhecido por um alvará do Infante João, passado em Alcácer, a 15
de Fevereiro de 1434. Dirigido aos juízes da vila, cometia-lhes a tarefa de
elaborarem um registo dos costumes locais, feito na presença do escrivão do
almoxarifado, de modo a inventariar os direitos da Ordem e a esclarecer, dizia,
alguuas duujdas que se recreçerom. Como se isso não lhe dissesse respeito, o
Infante omitiu a natureza dessas dúvidas, embora todos soubessem o que estava
em jogo na passagem a escrito dos costumes da vila. Na única versão conhecida
desses costumes, a que foi copiada, em Março de 1488, para a acta da visitação à vila, a maior
parte das verbas diz respeito ao foro e às liberdades dos cavaleiros locais, a
que se juntou uma regulamentação do relego e do oitavo pago pelos outros
moradores da vila. De resto, a própria realização deste treslado, que se fez
preceder pela cópia do alvará do Infante, revela como as prioridades da Ordem
se tinham alterado, já que ele terá sido motivado pelo reconhecimento do valor
das cavalarias no conjunto das rendas cobradas na vila. Segundo o testemunho
dos visitadores de 1488, as libras pagas durante o mês de Maio ascendiam então
a cerca de 15 % dos rendimentos da milícia, certamente porque muitos
proprietários se faziam cavaleiros de costume, como então ficou anotado». In Luís Filipe
Oliveira, Os cavaleiros de Carneiro e a herança da cavalaria vilã na
Estremadura. Os casos de Arruda e de Alcanede,
Instituto
de Estudos Medievais, Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, Universidade
Nova de Lisboa, Revista Medievalista, ano 1, número 1, 2015, ISSN 1646-740X.
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