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A
permanência desta cavalaria nas vilas de Arruda e de Alcanede permite sugerir,
por outro lado, que as comunidades respectivas não se tinham dissociado, por
completo, das élites de cavaleiros e que estavam dispostas a lutar pela defesa
dos costumes e dos privilégios que as caracterizavam. As notícias não são muito
esclarecedoras, nem mesmo na Arruda, onde aqueles costumes tiveram maior
continuidade. Não é impossível, contudo, que os rituais de entrada em cavalaria
se fizessem acompanhar de algumas celebrações festivas, onde se comemorasse a
renovação da força colectiva e se regenerassem os sentimentos de pertença e de
partilha entre toda a comunidade. Nas duas vilas, essas cerimónias faziam parte
dos rituais de entrada na vida adulta, associando-se, em Alcanede, a gestos que
celebravam a riqueza e a abundância, recorde-se a alusão à boda e à quebra de
vasilhas de vinho, ou a exibições de perícia equestre, no caso de Arruda. Nesta
última vila, nem sempre os novos cavaleiros se limitariam, por certo, a mostrar
os seus dotes equestres perante as autoridades locais, não sendo improvável que
essas exibições evoluíssem para alguns jogos do agrado de todos. O momento
convidava, aliás, a uma reavaliação lúdica dos méritos de todos e do lugar de
cada um na hierarquia do grupo, de modo a sanar as perturbações criadas pela
recepção dos neófitos. Talvez se organizassem então algumas carreiras e se
mimasse um combate, ou se corresse um touro pelas ruas da vila. De acordo com a
notícia dos visitadores de 1488, era isso que ocorria no dia consagrado a
Santiago, quando se agarrochava o animal oferecido pelos rendeiros da Ordem,
vendendo-se a pele e distribuindo-se a carne pelos pobres.
A associação
destes eventos lúdicos aos rituais de entrada em cavalaria, que aqui se sugeriu
a partir do pouco que se conhece, poderia documentar, de igual modo, uma
tradição concelhia de jogos equestres, independente das justas e dos torneios
da Corte. A avaliar pelo caso da Arruda, essa tradição mais popular ter-se-á
mantido para lá de finais da época medieval, estando apta a adquirir novas
características e a adaptar-se a outras solicitações. Nessa perspectiva, ela
poderia oferecer uma explicação diferente para o desenvolvimento das festas
conhecidas como as Cavalhadas, que se tornaram frequentes desde meados do
século XVI e que chegaram aos Açores e ao Brasil, sem necessidade de as olhar
como uma paródia dos jogos equestres da aristocracia. No actual território
brasileiro, onde as cavalhadas tinham muitas vezes lugar durante as
festividades do Espírito Santo, vindo a ganhar um sabor aristocrático no
decurso do século XVIII, um dos mais antigos testemunhos continuava a fazê-las
coincidir com os dias faustos das bodas e dos casamentos. Mas essa é já uma
outra história, por muito que nela ecoem alguns dos costumes herdados da antiga
cavalaria vilã». In Luís Filipe Oliveira, Os cavaleiros de Carneiro e a
herança da cavalaria vilã na Estremadura. Os casos de Arruda e de
Alcanede, Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa, Revista Medievalista, ano 1, número 1, 2015, ISSN
1646-740X.
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