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As
informações são mais completas para os cavaleiros de Arruda, graças a um
documento com os Costumes da Vila, que foi elaborado pelos juízes da terra, em
obediência a um alvará do Infante João datado de Alcácer, a 15 de Fevereiro de
1434. A cavalaria de costume apresentava aí um carácter voluntário, à qual
todos podiam aceder, embora o filho de cavaleiro fosse dispensado de presentear
o alcaide com dois frangões, caso quisesse ser feito cavaleiro por ocasião do
seu casamento. A cerimónia de entrada tinha lugar em Maio e desenrolava-se num
espaço público, devendo o candidato caualgar em çima de hüu cauallo e hijr
peramte os Juizes e vereadores procurador e homeens boons E o alcaide que he
posto por o senhorio E o que quiser ser caualleiro ha de dizer assy aos dictos
Juizes e homeens boons Eu quero ouyr e gouuyr dos vsos e foros e boons costumes
e quero sser caualleiro E emtam diram os homeens boons e alcaide que ho am por
caualleiro. Ao contrário dos fidalgos de linhagem e dos cavaleiros de
espora dourada, que dela estavam isentos, o cavaleiro de costume pagava a
cavalaria durante o mês de Maio, no valor de 3 libras antigas, mas comunicava a
honra à mulher e aos filhos menores. Em rigor, era a satisfação desta taxa
recognitiva que lhe garantia o foro de cavaleiro e a isenção fiscal,
acarretando o incumprimento dessa obrigação a devassa da sua honra, com o
porteiro da Ordem a lamçar hüa porta do que assy non quiser pagar fora do
conçe[lho] e lamça lla em terra. Mau grado as diferenças que entre eles
se detectam, em boa parte devidas à natureza da informação disponível, os
cavaleiros de Arruda e de Alcanede não deixam de partilhar diversas
características comuns. Nas duas vilas, o estatuto de cavaleiro está claramente
associado à isenção fiscal e à satisfação de uma taxa fixa, embora se
desconheça quando eram devidos os alqueires de trigo pagos pelos cavaleiros de
Alcanede. Mais evidente no caso de Arruda, onde se exigia a presença do alcaide
e de toda a governação, nem por isso se perdera, em Alcanede, a publicidade
necessária ao ritual de entrada em cavalaria. Nesta localidade, a cavalaria
podia ser conferida pelo progenitor do candidato, mas a cerimónia não decorria
longe dos olhares de todos, pois continuava a coincidir com o dia da boda, que
marcava a entrada na vida adulta, e a ser caracterizada por gestos que
ostentavam a riqueza possuída. Ignora-se como o alcaide conduzia aqui o ritual
de recepção de um novo cavaleiro, ou se também seria agraciado por quem não era
filho de cavaleiro, como ocorria na Arruda, mas talvez lhe estivesse destinado
o tarraço de vinho que outros britavam contra uma parede.
As
cerimónias descritas nestas vilas da Estremadura parecem corresponder,
portanto, aos vestígios de um antigo ritual de entrada em cavalaria. A
realização da cerimónia no mês de Maio, durante o qual se satisfaziam, por
outro lado, as três libras da cavalaria, não deixa de recordar, com efeito, a
época escolhida para os alardos concelhios e para o pagamento da antiga taxa de
substituição do fossado, o morabitino de Maio. O carácter voluntário desta
cavalaria de carneiro, muito evidente nos costumes de Arruda, também guarda
alguma relação com a situação documentada na Estremadura durante os séculos XII
e XIII, onde a cavalaria não tinha uma base censitária e o peão podia ascender
de categoria, caso adquirisse um cavalo. A mesma homologia revela-se, ainda, na
tradição de reservar ao alcaide um papel decisivo na recepção dos novos
cavaleiros, tal como então se verificava nos concelhos de Lisboa e de Santarém.
Segundo os costumes de Santarém comunicados ao Alvito, também cabia ao alcaide
o direito a ser honrado pelo peão que queria ser arrolado entre os cavaleiros,
embora o filho de cavaleiro estivesse dispensado de tal oferta, como sucedia na
Arruda, e, quiçá, em Alcanede.
Talvez se
possa aproximar destes testemunhos o ritual documentado em Tomar, a 3 de Abril
de 1385, embora não seja certo que se tratem de cavaleiros de carneiro, quer
pela ausência desta designação degradante, quer pelo facto de eles possuírem,
pelo menos, uma arma ofensiva. Neste caso, a cerimónia tinha lugar por ocasião
da boda do candidato a cavaleiro, o qual deveria então montar um cauallo cum
hüa lança na maão e leuaua hüu alqueire de pam amasado e hüu cantaro de vinho e
chegaua aa porta do castello da dicta villa e ferya com a lança em ella e dizia
caualleiro quero eu seer E emtam leuaua o que hi staua por alcaide o dicto pam
e vinho E se esto nom fizese auja ho alcaide de leuar delle a oytaua dos seus
beens e se esto fizese nom auja delle de leuar nada. Quase todas as
características atrás descritas se encontram aqui presentes, desde a isenção
fiscal ao carácter público e voluntário da cerimónia, sem esquecer a data desta
e as ofertas ao alcaide. Por tudo isso, não é de todo seguro que uma simples
lança fosse capaz de os distinguir dos cavaleiros de carneiro, ou que pudesse
identificá-los com os cavaleiros de quantia. De acordo com um artigo das Cortes
de Elvas de 1361, estes últimos deviam possuir um equipamento militar bem mais
caro e diverso, onde entravam diversas protecções do corpo e da cabeça, pelo
que os cavaleiros de Tomar só com dificuldade se incluiriam entre os mais
recentes cavaleiros de quantia.
Os
cavaleiros de carneiro e de costume parecem ser, portanto, os herdeiros remotos
da antiga cavalaria vilã da Estremadura. Mas essa herança também se alterara,
entretanto. Em termos gerais, perdera-se a memória da prestação de um serviço
militar e a honra do cavaleiro dependia agora do pagamento de uma taxa de
substituição. A degradação do estatuto fôra ainda maior em Alcanede, onde
aquela taxa se satisfazia em géneros e mal se distinguia dos outros foros,
enquanto o ritual de entrada em cavalaria perdera boa parte da sua dimensão
pública, sem que se transformasse, contudo, numa cerimónia doméstica e
familiar. Nas suas vilas de origem, os cavaleiros guardavam intacta a honra e a
isenção fiscal, mas a sua cavalaria dizia-se agora de carneiro, de tarraço, ou de
costume, vendo-se qualificada com termos um pouco enigmáticos e degradantes,
talvez porque se perdera o costume de entregar um carneiro em substituição do
fossado, como em tempos acontecia nalgumas vilas castelhanas dos séculos XI e
XII. De qualquer modo, essas designações pouco prestigiantes da sua cavalaria
não deixavam de reflectir, afinal, a degradação do seu estatuto pessoal, para
lá dos limites da vila onde viviam e moravam». In Luís Filipe
Oliveira, Os cavaleiros de Carneiro e a herança da cavalaria vilã na
Estremadura. Os casos de Arruda e de Alcanede,
Instituto
de Estudos Medievais, Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas, Universidade
Nova de Lisboa, Revista Medievalista, ano 1, número 1, 2015, ISSN 1646-740X.
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