O
Assassin de Lisboa 1142-1143
«(…) O grupo de homicidas
reunia-se nos túneis da mina da Adiça e, quando o ferido expirou, Mem
examinou-o e ao seu falecido companheiro, concluindo que os dois não passavam
de antigos salteadores. Depois, dirigiu-se à casa onde as três irmãs se tinham
enfiado, ao fundo da ruela. Bateu à porta, elas abriram-na e ele disse-lhes que
o perigo passara, mas, sendo três raparigas moçárabes, era evidente que o
ataque podia repetir-se. Assustadas, pois eram órfãs de pai e mãe, Ália, Élia, Ília
pediram-lhe ajuda e Mem aceitou ficar em casa delas, que nessa noite lhe
cozinharam pão de ló, açordas e pão folhado. Depois disso e durante todo o
verão seguinte, Mem viveu com as três irmãs, protegendo-as, enquanto mais
cristãos e moçárabes continuavam a morrer.
O discurso contra a selvajaria
moral da cidade acabou por prevalecer, pois os Mantos Vermelhos não só haviam ganho
popularidade entre os muçulmanos, como tinham conseguido impor costumes
antigos, o que agradava ao velho wali e até ao almoxarife, que assim
cobrava mais impostos. No princípio do Outono, aquela vanguarda ética e sangrenta
era já estimada por partes da população, sobretudo pelos maridos chifrados do passado
e pelas autoridades religiosas sarracenas, que finalmente viam uma inesperada calma
substituir a anarquia anterior. Agora, quem desejasse a luxúria teria de praticá-la
em casa e não à frente de toda a gente.
De forma enviesada, Mem
beneficiou dessa onda moralista que obrigava todos ao recato. Vendo-se sem possibilidades
de frequentar soldadeiras, que haviam desaparecido, ou de aceitar os avanços
das mulheres mais afoitas, nas ruas, que se haviam suspendido, dedicou-se às três
irmãs, que confiaram tanto nele ao ponto de se enamorarem.
Se tendes três,
tomai uma de cada vez.
Receosas dos Mantos Vermelhos, elas passaram a tecer e a cozer dentro de casa, enquanto
o almocreve vendia nas ruas os produtos, trazendo comida de volta. Gratas, ao fim
do primeiro mês as irmãs Ália, Élia e Ília combinaram dar-se ao almocreve. Ália
oferecia-se à terça, Élia à quinta, Ília no sábado, e foi nos braços e nos mimos
daqueles três anjos cúmplices que Mem dissolveu o seu amor à princesa Zaida.
Este terno arranjo só foi perturbado
quando correu a notícia de que os Mantos Vermelhos iam realizar uma procissão em
Lisboa, exibindo a relíquia cristã com a qual matavam os seguidores de Cristo,
bem como os que se haviam convertido falsamente ao Islão. O bando de facínoras
perdera a vergonha e, com o apoio do wali e do almoxarife, ia apresentar-se
com orgulho ao povo lisboeta. Receando pela vida das três irmãs, Mem obrigou-as
a permanecerem em casa, mas foi observar o medonho espectáculo nas ruas. Como
já calculava, a maioria dos Mantos Vermelhos eram bandidos e ladrões, pederastas
ou desertores, mas Mem viu caras conhecidas, trinta feddayins de Ismar,
provavelmente fugidos depois da batalha de Ourique. Juntamente com alguns normandos,
talvez antigos piratas, compunham um grupo sinistro, sendo o mais assustador o
chefe, o tal Orimar, a quem chamavam também a Pústula, pois o seu corpo apresentava-se
coberto de chagas e pus». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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