«(…) Seria necessário dedicar todo um tratado para analisar
este homem cuja oratória e poder de persuasão fazia agitar tudo à sua volta.
Esse não é o objectivo desta reflexão, mas apenas focar um ponto pouco debatido
da personalidade do abade de Claraval que se insere directamente no nosso
estudo: a sua influência na arquitectura militar. No que se refere à História
da Arte sempre foi reconhecido ao santo um papel fundamental na difusão da arte
religiosa, pela concepção de uma nova arquitectura gótica. Oposta à arte de
Cluny está a de Cister, uma linguagem depurada, sem ornamentos ou formalizações
excessivas, de que Alcobaça permanece entre nós como um dos mais paradigmáticos
exemplos. Todavia, no que se refere à arte militar, parece desde sempre descurada
a sua influência neste domínio, apesar do carácter guerreiro que, nalguns
escritos, transparece da sua personalidade. Será absurdo pensar que terá
influenciado a arquitectura dos castelos das Ordens Militares, sobretudo a arte
templária? Podemos considerar o Templo e, por arrastamento, outras ordens
religiosas militares como uma criação perfeita do cristianismo ocidental? Terá
tido São Bernardo um papel inovador nesta conjuntura?
Para se
entender o sentido atribuído pelo monge à arquitectura militar devemos, por um
lado, recorrer à sua produção literária, e, por outro, tentar enquadrá-la no
leque variado de referências que esses seus escritos recebem. Deste modo, é
imprescindível compreender as posições que tomou acerca da legitimação da
guerra e da sacralização limitada da violência. Jean Leclercq, no artigo A
atitude espiritual de São Bernardo perante a guerra, abordou, numa
brilhante síntese, o carácter de um homem de paz na sociedade agressiva do seu
tempo. Através deste texto, são desenvolvidas as diferentes intervenções do
abade de Claraval nos diversos tipos de confrontos, quer entre cristãos, quer
sobretudo entre estes e todos os outros, muçulmanos, ou mesmo judeus e
heréticos, em que esteve envolvido, como impulsionador ou apaziguador, nos
últimos anos da sua vida. No conjunto destas situações, destacam-se as que
envolvem o Islão, onde o cisterciense defende o recurso à guerra defensiva, mas
sempre tendo como missão reduzir ao mínimo a violência e, como objectivo final,
restabelecer a paz. Aquele autor conclui: ele sentiu a dificuldade que
existe em estar dividido entre as exigências do Evangelho e os dados próprios
da cultura a que pertencia, e que o limitava. Houve também nele, por vezes, uma
mescla de violência e de não-violência: ele dá sempre preferência à segunda.
Apesar do
estudo intenso em torno de São Bernardo, muito pouco se sabe do conhecimento
que ele teria da realidade muçulmana da época. Alguns autores sustentam que os
místicos cristãos e muçulmanos, ao invés de serem tipos opostos, assentavam em
paralelos tão flagrantes que permitem estabelecer influências, quer unilaterais
quer recíprocas. A Península veio a constituir uma placa giratória entre esses
mundos em confronto, muito por via da redescoberta das fontes hebraicas, a qual
permitiu o estabelecimento de contactos pacíficos. Por paradoxal que possa
parecer, diversos autores têm comparado, na Península, o clima de luta
espiritualizada imprimido pelos Cistercienses ao do seu inimigo, os Almóadas
provenientes do Norte de África. Segundo D. Maur Cocheril, paralelamente ao
movimento nascido da reforma gregoriana e que se concretiza no intransigente
rigorismo de Cister, desenvolve-se no Magreb um movimento idêntico, sem que
seja possível de explicar esse fenómeno pelos contactos de um com o outro (...)
com mentalidades profundamente hostis, radicalmente incapazes de se compreender.
O mesmo autor defendeu que os Almóadas africanos e os Cistercienses, com os
Cruzados franceses, são os elementos estrangeiros que imprimem à Reconquista um
carácter de guerra santa desconhecido dos autóctones, Cristãos e Muçulmanos.
Noutra perspectiva, Torres Balbas vai ao ponto de sustentar que a arquitectura
religiosa cisterciense pode ter sofrido a influência almóada. Como veremos,
tais considerações interessam, em muito, a esta problemática.
O
conhecimento do Islão no Ocidente medieval ter-se-à devido também a um relativo
intercâmbio cultural entre europeus, sobretudo francos, e muçulmanos no
Oriente, apesar de aí ser muito mais uma zona de guerra do que de transmissão
de ideias ou de livros. Mas, no século XII, a Terra Santa já não é terra
incognita. Muitos francos falavam o árabe, como Reinaldo de Châtillon ou
Reinaldo de Sidon. No entanto, se exceptuarmos poucos exemplos peninsulares, quase
sempre traduzindo obras filosóficas e científicas de textos originais gregos,
antes da acção premeditada de Pedro, o Venerável, os investigadores não têm
encontrado qualquer tradução de livros da doutrina árabe para o latim ou o
francês. O abade de Cluny foi, porventura em toda a Cristandade, o homem mais
empenhado em substituir às lendas fantasistas de alguns seus contemporâneos uma
imagem mais aprofundada do Islão e do seu fundador, Maomé. Tinha perfeita
consciência da ignorância profunda que os europeus revelavam do credo
muçulmano. O seu objectivo primordial era a defesa pacífica da Cristandade,
lutando, no terreno intelectual, contra aquilo que considerava ser a heresia
sarracena, para chamar deste modo os muçulmanos à verdadeira fé e preservar os
crentes cristãos desse contágio. Para tal reúne uma equipa de competentes
tradutores encarregada de transpor para o latim os documentos autênticos
referentes à vida do profeta, da sua doutrina e do livro sagrado do Islão, o
Corão. Graças à sua determinação e à difusão que os clunisinos se encarregaram
de fazer, os cristãos passaram a dispor de fontes seguras acerca da religião
muçulmana. Chega inclusivamente a enviar ao abade de Claraval um apanhado
histórico acerca do nascimento do Islão e da biografia do seu fundador, para o
incitar a que, com base nestas informações, compusesse uma apologia
anti-islâmica, à qual o destinatário não ousou responder. Depois de ter perdido
a esperança que São Bernardo empreendesse tal tarefa, e após ter solicitado
semelhante pedido a outros teólogos, ele próprio se propôs a tal tentativa». In Nuno
Villamariz Oliveira, O Ideário de São Bernardo e a sua Influência na
Arquitectura Militar Templária, Revista Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de
Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.
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