«(…) Contudo, mal vi pela primeira
vez a princesa da Sabóia, tive pena do meu melhor amigo. Que injustas eram as leis
do mundo! Chamoa era uma beldade, um mulher entusiasmante e inimitável, mas
aquela rapariga de dezanove anos jamais chegaria perto dela. Mafalda da Sabóia não
era nem bonita, nem simpática. Baixa e feia, de olhar zangado e tenso,
transpirava irritação e contrariedade, sendo absolutamente óbvio que abominava a
ideia de deixar a sua terra para casar com um príncipe distante e reinar sobre gente
que considerava inferior. Nem por uma vez nos sorriu, mirando-nos com desprezo,
e recusou mesmo estar presente na ceia que Amadeu de Maurienne nos ofereceu,
demonstrando uma consideração e uma amabilidade que a filha não herdara.
Cristão e descendente de famílias nobres, Amadeu era parente de importantes figuras
da Cristandade, onde se contavam um papa já falecido, Calisto II; o imperador romano-germânico,
Henrique IV, de quem era vassalo; e o rei de França, Luís VII, de quem era tio por
via do casamento.
A sua filha Mafalda era, portanto,
sobrinha de um dos mais poderosos reis da Europa e prestava vassalagem ao único
imperador que a Cristandade aceitava como legítimo, laços que permitiriam a Afonso
Henriques autonomizar-se em definitivo de seu primo direito Afonso VII. Aquela seria,
pois, uma união de máxima importância para o nosso rei. Porém, ao contemplar
Mafalda da Sabóia uma última vez, quando nos despedimos, tive a certeza de que seria
difícil o meu melhor amigo apaixonar-se por uma mulher tão desapontada com o seu
destino, em cujo rosto e corpo não se viam dádivas que pudessem incendiar os desejos
de um príncipe que dormia com a lindíssima Chamoa e com a estrondosa normanda, Elvira
Gualter. Certamente pressentindo as minhas angústias, meu pai tentou dissolvê-las
quando me disse, já a caminho de Cluny:
julgais que é a primeira que casa
contrariada? As rainhas só têm de ser pacientes, deixar os reis tomá-las e dar-lhes
filhos.
Era essa também a opinião de Bernardo
de Claraval, que visitámos, dias depois, na Abadia de Cluny. O famoso
religioso, principal responsável pela formação da Ordem do Templo e grande entusiasta
das cruzadas, ficou muito agradado por saber que Afonso Henriques ia finalmente
desposar Mafalda da Sabóia. Sereno e simpático, com o aspecto de um avô carinhoso,
Bernardo de Claraval surpreendia, no entanto, pela vertiginosa velocidade dos raciocínios
e pela impetuosidade feroz das vontades. A luta contra os infiéis era o centro da
sua vida e pregava há vários anos a favor de novos contingentes serem lançados a
caminho de Jerusalém, para garantir a conquista da cidade onde Cristo morrera. A1ém
disso, defendia que aquela imensa guerra não se travava apenas na distante Terra
Santa, mas também no nosso território. Embora sem estabelecer prazos, Bernardo de
Claraval garantiu-nos que em breve uma nova vaga de cruzados, saída do Norte da
Europa, poderia ajudar-nos a tomar Lisboa em definitivo, tirando desforra do acontecido
dois anos antes.
Desta vez, a cidade cairá e os infiéis
serão vencidos!, exclamou o abade, que muitos já consideravam um santo. Nas suas
palavras, descobri igualmente forte admiração por Afonso Henriques, que julgava
grande rei e valoroso guerreiro, mas não por Afonso VII, que o patrono dos templários
desaprovava por encontrar nele semelhanças desagradáveis com sua mãe, dona Urraca,
como a propensão para a mentira e o excesso de ambição. Para o emérito abade de
Cluny, só uma qualidade distinguia o imperador da Hispânia da sua progenitora: a
perícia guerreira. Ao contrário da mãe, está cada vez mais forte, uniu a Hispânia
e em breve conquistará Córdova e Sevilha e chegará ao mar! A destreza nas batalhas
fazia de Afonso VII um monarca cristão respeitável, mas era necessário não o
deixar ir longe de mais. Embora não tivesse conseguido subjugar Afonso Henriques,
o santo abade avisou-nos de que o imperador continuaria a tentar minar o primo
direito de outras formas. Os portucalenses deviam tomar atenção redobrada às suas
manigâncias extremas e sujos estratagemas». ». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT