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O pai sorria, esperançoso. A falta de ouro fez com que tivesse de mandar os
seus tesouros mais preciosos para longe da oficina onde fabricava, ele mesmo,
tesouros. Mas a minha entrada no mosteiro foi banal, mais uma menina que ia
poder viver sem passar necessidades, ser educada para a fé. Tantas outras foram
iguais a mim. Não há ninguém igual a mim. O cheiro a comida inebriou-me mas não
me cegou. Gosto, pai. Não poderia atribuir culpas a quem não se interroga quanto
aos hábitos com que foi criado. A cozinha tem uma passagem para a igreja e uma
escada para as celas de cima, interrompida por diferentes portas: a que acede a
um quarto com as pinturas de S. Bernardo no tecto, a que leva apenas a um
espaço de arrumações e outra que desemboca na sala grande. A sala grande tem um
chão em madeira clara que se estende brilhante diante dos nossos olhos, num
rectângulo faustoso, Reflecte a luz das janelas de vidros da Boémia e a talha
dourada do tecto. O amarelo predomina, mesmo nos gonzos e nas ferragens em ouro
das portas de madeira rica trazida do Brasil. Imaginem um espaço onde o ar que
se respira reluz. Os azulejos azuis parecem envergonhados por conviverem com
tal intensidade de cor e magnificência.
De
dentro para fora, pude avistar o claustro grande, onde algumas noviças
passeavam: relva e pequenas sebes aparadas na perfeição, geometricamente
erguidas, a ladear uma fonte. O claustro da Moura era igual, labiríntico, com
árvores em redor, e a estátua da abadessa dona Maria Luísa Moura, envergando
roupas mouriscas e um turbante na cabeça. Admirei essa abadessa do passado, que
tinha ousado erigir uma estátua em sua honra, apresentando-se em trajes tão
pouco católicos. Saberia o meu pai o que estava a fazer? Era difícil conceber
que, profundo conhecedor do clericalismo popular, das histórias pecaminosas de
freiras e padres, freiras e nobres, freiras e reis, não soubesse para onde
enviava as filhas. Talvez tenha considerado que os seus ensinamentos tenham
sido tão explícitos que nós não prevaricaríamos. Ou talvez tivesse desejado, na
sua alma universal, que obtivéssemos dividendos do contacto social com damas de
outra cultura e autoridade. Em Odivelas existiram verdadeiras amazonas,
guerreiras da guerra social e do poder, que chegavam ao êxtase divino da
clausura, o excesso de reza, a leitura cristã, todo o ambiente espiritual
permitia que as reacções fossem excessivas em todos os campos da existência, e
ao patamar máximo das tentativas de domínio e influência. Confessores, outras
freiras, fidalgos, familiares, subalternos e outros tentos eram peões em lutas
de poder fortíssimas, intrigas complexas e desmandos de senhoras nobres com cetim
debaixo do hábito que queriam ser consideradas apesar de estarem fora do mundo.
Ou porque a ideia de fora do mundo é em tudo contrária à natureza social do
homem. E ainda mais da mulher. Não fomos feitas para sermos sozinhas. Somos mães.
A igreja é construída em profundidade com fortes colunas a suportar um coro de
monjas fúteis que em nada dignificam a condição monástica. Quando entrei,
estavam a cantar e calaram-se com a minha presença. Lembro-me da sensação de
desconforto que a minha mente registou, ao ser escrutinada pelas monjas que
ensaiavam. E lembro-me de olhar Jesus Cristo de frente, ele na cruz, eu na cruz,
e pensar que ambos tínhamos pais fracos que mostravam mal o amor que sentiam
por um filho». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014,
ISBN 978-989-232-783-9.
Cortesia de ASA/JDACT