segunda-feira, 17 de julho de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «A leitura que Ibn Qasi e os almóadas faziam do Corão impunha normas duras e opressivas só compreensíveis para gente oriunda dos desertos africanos, inculta e bruta»

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As Princesas de Córdova. Silves, 1145
«Quase todos os acontecimentos relevantes passados durante este novo ano não foram presenciados por mim. Para os relatar, queridos filhos e netos, recorro às narrativas que me fizeram a minha cunhada Chamoa, Mem e também a princesa Zaida. São as descrições deles que aqui reproduzo, para que possais perceber o quanto os nossos sucessos militares, obtidos em Portugal nos anos seguintes, foram uma consequência directa da forma brutal e vertiginosa como a Andaluzia muçulmana se destruiu a si própria. Sentada na varanda do seu quarto, no palácio de Silves, Zaida constatou que os preparativos para a guerra tinham uma única virtude: haviam afrouxado a vigilância do marido. Desde que Mem a salvara dos assassins que Ibn Qasi ficara em alarido por temer pela vida dela e de Maryam, mas também por invejar o estatuto de salvador da princesa que o almocreve alcançara. Mais de ano e meio passara e Qasi não esquecera o que vira: Mem junto à cama dela, sentinela única em defesa de Zaida. Receoso, proibira-a de aproximar-se do pombal e de passear sozinha.
Em parte, Zaida compreendia, os feddayins tinham tentado eliminá-los. Mas não se tratava só disso. Ibn Qasi mudara, a ambição transformara-o, a religião exigira-lhe novas regras, o domínio da mulher era uma imposição dos almóadas de Marrocos, que não aceitavam que uma esposa se desse a terceiros. Na Córdova antiga e gloriosa, onde a sua mãe, Zulmira, crescera, as mulheres tinham direito aos mesmos prazeres do que os homens. A fidelidade não era exigida, nem a uns nem a outros; as brincadeiras com homens ou mulheres eram consideradas saudáveis e até necessárias, para que a trepidação carnal não baralhasse o espírito. Um casamento era apenas uma união legal, a formação de uma família, a transmissão de riquezas e propriedades. Não ficava em causa por se rebolar com alguém numa cama! Por isso, os homens tinham haréns e as mulheres dos sultões se banhavam com serviçais negros nas piscinas, como no início do belo e antigo livro das Mil e Uma Noites.
A leitura que Ibn Qasi e os almóadas faziam do Corão impunha normas duras e opressivas só compreensíveis para gente oriunda dos desertos africanos, inculta e bruta. Mas eles tinham poder, tanto poder! E, Ibn Qasi estava a segui-los cegamente, até a bela cidade de Silves já se ressentia. Os poetas fugiam e as mulheres já usavam véu, escondiam a cara e diziam que sim a tudo o que os maridos impunham. Mas o aproximar da guerra libertara um pouco a pressão em que Zaida vivera nos últimos tempos. A agitação das tropas e o planeamento das operações haviam distraído Ibn Qasi, que diminuíra a vigilância apertada imposta à princesa. Por isso, lhe chegou aquele pombo, com a mensagem de Afonso Henriques, onde este avisava que um padre, Mem e Chamoa haviam sido levados por Ismar para Córdova, onde já se encontravam também Abu Zhakaria, governador de Santarém, e Fátima, a sua irmã! A voz da mãe ecoava-lhe nos ouvidos, enquanto observava a pequena Maryam a brincar com as bonecas. Iria a filha ouvi-la também, um dia que ela morresse? Zaida não sabia, ninguém conseguia entrar na mente de outra pessoa, o pensamento e a dor eram impossíveis de partilhar». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT