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«(…) A história sempre me pareceu
peculiar. Um urso ataca um cavaleiro veloz e deixa-se cair sobre ele, como um arco
total. Mas lendas são lendas e a entrada da quinta, numa estreita viela que desemboca
no largo, pertence ao tipo de irrealidade da qual são feitas as grandes histórias.
Passa despercebida a muitos viajantes, talvez tenha sido assim feita propositadamente.
O portão é em ferro. Hoje, um portão ajoelhado aos pés do tempo. No dia em que
eu entrei, um urso em ferro a abater-se sobre mim, escuro e tenebroso, tão grande
como a minha casa ou o Palácio Real, que arfava pesadamente sobre o meu pescoço,
arrepiando-me com uma intensidade quase prazerosa. Era altaneiro, metálico, ruim.
Era uma pedra que não estava no meu caminho mas em que eu tropeçava. Eu não era
o monarca Dinis, era o urso morto, no trilho de uma existência abatida. Senti-lhe
o cheiro quando lhe toquei, um emaranhado de metal, quando crispei a mão pela parte
de fora para não desmaiar. Agitei a grade na ínfima esperança de a sentir
frágil e facilmente destrutível. Se assim fosse, poderia fugir quando quisesse,
regressar ao mundo que conhecia, à vida que era a minha. Senti-me uma prisioneira
do lado de fora das grades, eu própria fora da minha carne a vaguear num pequeno
campo verde fugidio. Vi-me de lado, de trás, senti pena da rapariga que ali estava.
Pai, se tivéssemos ouro, eu poderia
largar o portão? Não entendeu a pergunta. Continuei a abanar a grade cada vez com
mais força e violência; quando as mãos não eram suficientes usei as pernas e pontapeei-o
até me doerem os pés e, no meio da revolta, fiquei pendurada no portão como um
pequeno animal enredado na liana das terras do rei que eu nunca iria conhecer.
Não quero morrer! O pai deixou-me ali ficar até as mãos serem incapazes de qualquer
aperto. Olhei e vi que estavam negras. Passou-me pela ideia que o negrume pudesse
alastrar-se a todo o corpo como uma doença, tomar conta de mim, gelar-me o coração
e o corpo e incorporar-me no portão. De certa forma, foi isso que aconteceu. Colei-me
ao metal da entrada de Odivelas. E ali permaneci o resto da minha vida.
O mosteiro não me amedrontou. Era
de uma alvura angulosa, simples. Algumas pedras estavam marcadas com o símbolo dos
pedreiros que as haviam assentado, para poderem reclamar o pagamento certo. Depois
do urso e da iminência da morte, certamente que o rei deu ordens para não regatear
preços de construção. O alpendre que dá entrada ao mosteiro tem a forma de um meio
quadrado, duas alas cujas paredes são forradas a azulejos azuis e brancos, com imagens
de S. Bernardo, santo padroeiro. Notei o Escudo da minha ordem, a de Cister,
com as quinas à direita e os símbolos à esquerda, numa das cornijas da alpendrada.
Era belo. Perto da portaria, a roda onde comerciantes deixavam os produtos que
nos alimentavam. O engenho girava e, no interior, era a irmã-porteira quem
retirava os bens. Foi ela quem nos abriu a porta. A ironia do destino: foi ela quem
passou noites insones por causa das visitas do rei à minha cela. Mais ninguém tinha
autorização para abrir o mosteiro, ela era a guardiã e a chave para o mundo exterior.
Caminhei
pela portaria como uma condenada à morte, passei pelo átrio da Rainha Santa
Isabel e penetrei na cozinha, onde as irmãs conversas, monjas pobres como eu, se
afadigavam no preparo das refeições. A cozinha era alegre, com azulejos na chaminé
representando o rapto de Proserpina. O cheiro era indescritivelmente consolador,
uma mistura de açúcar e canela, fruta fresca, carne a assar num espeto, pão a cozer
num forno, marmelada a ser remexida numa enorme panela e uma maravilha à qual eu
não estava habituada: uma pia em pedra de onde brotava água cristalina num barulho
crepitante. Nas paredes, imagens de passarinhos, sereias, peixes, mulheres, uma
profusão alegre que me fez sentir acompanhada. Naquela cozinha, eu nunca me sentiria
sozinha. Gostas da cozinha, Paula?» In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014,
ISBN 978-989-232-783-9.
Cortesia de ASA/JDACT