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A preocupação evidenciada pela legislação canónica em
considerar a especificidade jurídica das crianças nem sempre teve como
objectivo a respectiva protecção. De facto, uma parte significativa das normas
produzidas nesse contexto destinou-se a proteger os adultos das consequências
de uma considerada falta de responsabilidade social e religiosa por parte das
crianças, a qual seria tanto mais grave quanto mais jovem elas fossem. Nesse
sentido, os canonistas preocuparam-se, sobretudo, em enunciar as incapacidades
jurídicas que deveriam atingir os não adultos, com vista à preservação do bom
funcionamento das instituições eclesiásticas.
Por
um lado, preconizaram a exclusão dos pré-adolescentes de todas as eleições
destinadas a escolher responsáveis pelos cargos e funções diocesanas, devendo-se
a Bonifácio VIII (1294-1303) a norma canónica que passou a fixar os catorze
anos como idade mínima requerida para esse efeito, a qual, de resto, foi depois
ampliada por Clemente V (1305-1314), quando exigiu a prévia condição de
sub-diácono aos participantes em tais sufrágios, ou seja, nunca antes dos
dezoito anos. Por outro lado, os canonistas também começaram a expressar a
opinião da necessidade de se restringir às crianças o usufruto directo e
imediato de direitos familiares de padroado e de eleição do local de sepultura,
visto ambos implicarem um problemático acesso a bens e rendimentos eclesiásticos.
Nesse sentido, duas decretais de Bonifácio VIII determinaram que as crianças
menores de sete anos apenas poderiam reivindicar a satisfação dos direitos de
padroado herdados dos pais por intermédio de uma tutoria juridicamente
reconhecida, o mesmo sendo necessário no caso de pretenderem contestar a
escolha familiar prévia do seu futuro lugar de sepultura e, nesse caso,
apropriar-se dos bens e rendimentos que já tinham sido entregues à instituição
religiosa antes designada para esse efeito.
Aliás,
a salvaguarda do património eclesiástico relativamente a actos ou decisões
tomadas por crianças consideradas muito influenciáveis e sem suficiente
discernimento jurídico também foi
objecto das decisões canónicas que impuseram a entrada na adolescentia como condição necessária ao exercício
da capacidade de depor ou citar em
justiça. No primeiro caso, só aos catorze ou aos doze anos,
conforme se tratasse de um rapaz ou de uma rapariga, é que os jovens podiam ser
ouvidos em causas cíveis, enquanto para as causas criminais se passou a exigir
a idade da passagem da adolescentia para a juventus como limite mínimo para testemunharem em
juízo. Reservava-se , contudo, a excepção no caso de não haver
qualquer outra possibilidade de prova, de poderem ser ouvidos ainda durante a adolescentia,
não sendo porém o seu testemunho prestado sob juramento e funcionando apenas
como indício a ter em conta para a resolução da sentença a dar ao crime em
julgamento, conforme, aliás, refere, no século XIV, o bispo de Silves, frei
Álvaro Pais, no seu Estado e Pranto da Igreja.
Em relação
ao segundo caso, acabou por prevalecer o princípio da negação aos infantes de
qualquer direito de acusação em justiça, visto, nas palavras do canonista atrás
referido, não saberem “o que vêem. De resto, nem durante a adolescentia deveriam as crianças ser consideradas
capazes de promover uma acção judicial que visasse matérias temporais, havendo
que atingir a juventus para
poderem desencadear um litígio que envolvesse a denúncia de delitos situáveis
fora da esfera dos bens ou benefícios espirituais, já que só relativamente a
esses, entre os quais se incluíam os casos de casamento, entrada na vida
religiosa ou direito de padroado, lhes era reconhecido o direito de citar em
justiça.
Porém,
embora os canonistas da Baixa Idade Média se tenham preocupado com o
desenvolvimento de uma legislação orientada para a discriminação negativa dos
direitos das crianças, não deixaram de agir em ordem à sua protecção jurídica,
tal como sucede em relação aos esponsórios, à sua entrada na vida religiosa e à
questão da respectiva responsabilização criminal. No que se refere à primeira
matéria, foi com Gregório IX (1227-1241) que se consagrou o princípio da
validação jurídica dos esponsórios das crianças prometidas em casamento pelos
pais, muitas vezes antes dos sete anos de idade, passando a fazer depender a
sua futura transformação num matrimónio do consentimento dos noivos quando
chegados à idade da puberdade, salvo no caso da existência de uma união carnal
prévia e precoce.
Uma
tal medida, que retirava aos progenitores ou aos familiares a exclusiva decisão
do futuro conjugal dos respectivos filhos ou parentes, insere-se no conjunto
das medidas que os eclesiásticos desenvolveram, desde o século XII, para
sacralizar o matrimónio. De facto, é neste contexto que os contratos de
casamento deixaram de ser apenas considerados como meros actos de gestão
familiar de alianças de parentesco para passarem também a significar decisões
religiosas que deviam envolver a concordância e a responsabilização individual
dos cristãos que as protagonizavam, não sendo as mesmas concebíveis antes de
eles atingirem a puberdade, porque só então poderiam validar ou rejeitar
conscenciosamente os compromissos de conjugalidade que haviam sido feitos em
sua intenção». In Ana Rodrigues Oliveira, A Criança na Sociedade
Medieval Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos
Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.
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