quinta-feira, 13 de julho de 2017

Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «O desdenhoso arcebispo insistira: ainda por cima, meu pai e minha mãe Dordia haviam-me tido a mim, Lourenço Viegas, apenas meses antes do nascimento do príncipe de Portugal»

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A intriga de Compostela 1140-1142
«(…) Ao longo da vida escutara esta descrição e ainda recordo, tinha eu talvez seis anos, ouvir meu pai jurar: Lourenço Viegas, foi um milagre que curou Afonso Henriques! Só quando a intriga de Compostela me chegou aos ouvidos percebi que esta crença inabalável da minha família não era partilhada pelos mais fortes opositores do Condado Portucalense. Segundo contou o arcebispo Gelmires no seu leito de morte, já na época houvera quem desconfiasse de marosca. Como podia um menino aleijado ter sido curado? Um enfezado transformara-se, como era no presente, num gigante? Perante um boquiaberto Afonso VII, o malicioso Gelmires cuspira uma dúvida sinistra: não terão trocado o menino por outro? Como sempre acontece com as ideias que parecem estapafúrdias, no início Afonso VII terá desprezado tal tolice. Mas, pouco a pouco, os viscosos argumentos do arcebispo de Compostela foram fazendo o seu caminho. A criança acabou entregue à nossa família com poucos meses, enquanto o conde Henrique andara a viajar ou a combater, voltando a Astorga, para morrer, tinha Afonso Henriques apenas três anos. E dona Teresa, era sabido, não dava especial atenção ao filho, via-o uma ou duas vezes por ano e nunca demonstrara grande afecto por ele. Seria porque também ela desconfiava de que o menino não saíra das suas entranhas?
O desdenhoso arcebispo insistira: ainda por cima, meu pai e minha mãe Dordia haviam-me tido a mim, Lourenço Viegas, apenas meses antes do nascimento do príncipe de Portugal. Era ou não possível que, em algum momento inicial da vida do petiz, meu pai me tivesse trocado pelo verdadeiro Afonso Henriques? Quando o arcebispo Gelmires terminou a prosa, esgotado e sem fôlego, o espírito do imperador já fervilhava, contaminado pela desconfiança épica que o outro fizera nascer e entusiasmado com o potencial tenebroso da refinada intriga. Contudo, para um homem sagaz e inteligente como Afonso VII, era por demais evidente que seria difícil, trinta anos depois, provar a veracidade da suposta fraude. O conde Henrique e dona Teresa tinham morrido há muito, tal como minha mãe, Dordia Viegas. Depois do falecimento de meu tio Ermígio, uns anos antes, o único que poderia confirmar tão complexo estratagema era Egas Moniz, mas o imperador de Leão tinha a certeza de que jamais o mordomo-mor do Condado Portucalense iria trair o seu amado príncipe!
Porém, a verdade era-lhe irrelevante, bastava a mera suspeita, uma espécie de veneno verbal. Política impura. O potencial fabuloso da lenda estava em lançar a história contra Afonso Henriques, para o diminuir e enfraquecer, minando a sua autenticidade aos olhos de portucalenses, aliados e inimigos. O que acharia o papa Inocêncio II desta possibilidade escandalosa? Que reacção teriam os templários impulsionados por Bernardo de Claraval, abade de Cluny e Cister, sempre prontos a apoiarem Afonso Henriques? O que diriam dele os muçulmanos como Ismar, Abu Zhakaria ou as princesas de Córdova? E os portucalenses gostariam de saber que, em Ourique, tinham aclamado rei um usurpador? Se a intriga de Compostela fosse expandida pela Cristandade, a boa estrela de Afonso Henriques seria manchada por uma escura nódoa». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT