A
intriga de Compostela 1140-1142
«(…) Ao longo da vida escutara esta
descrição e ainda recordo, tinha eu talvez seis anos, ouvir meu pai jurar: Lourenço
Viegas, foi um milagre que curou Afonso Henriques! Só quando a intriga de Compostela
me chegou aos ouvidos percebi que esta crença inabalável da minha família não
era partilhada pelos mais fortes opositores do Condado Portucalense. Segundo contou
o arcebispo Gelmires no seu leito de morte, já na época houvera quem desconfiasse
de marosca. Como podia um menino aleijado ter sido curado? Um enfezado transformara-se,
como era no presente, num gigante? Perante um boquiaberto Afonso VII, o malicioso
Gelmires cuspira uma dúvida sinistra: não terão trocado o menino por outro? Como
sempre acontece com as ideias que parecem estapafúrdias, no início Afonso VII terá
desprezado tal tolice. Mas, pouco a pouco, os viscosos argumentos do arcebispo de
Compostela foram fazendo o seu caminho. A criança acabou entregue à nossa família
com poucos meses, enquanto o conde Henrique andara a viajar ou a combater, voltando
a Astorga, para morrer, tinha Afonso Henriques apenas três anos. E dona Teresa,
era sabido, não dava especial atenção ao filho, via-o uma ou duas vezes por ano
e nunca demonstrara grande afecto por ele. Seria porque também ela desconfiava de
que o menino não saíra das suas entranhas?
O desdenhoso arcebispo insistira:
ainda por cima, meu pai e minha mãe Dordia haviam-me tido a mim, Lourenço Viegas,
apenas meses antes do nascimento do príncipe de Portugal. Era ou não possível que,
em algum momento inicial da vida do petiz, meu pai me tivesse trocado pelo
verdadeiro Afonso Henriques? Quando o arcebispo Gelmires terminou a prosa, esgotado
e sem fôlego, o espírito do imperador já fervilhava, contaminado pela desconfiança
épica que o outro fizera nascer e entusiasmado com o potencial tenebroso da
refinada intriga. Contudo, para um homem sagaz e inteligente como Afonso VII, era
por demais evidente que seria difícil, trinta anos depois, provar a veracidade da
suposta fraude. O conde Henrique e dona Teresa tinham morrido há muito, tal como
minha mãe, Dordia Viegas. Depois do falecimento de meu tio Ermígio, uns anos antes,
o único que poderia confirmar tão complexo estratagema era Egas Moniz, mas o imperador
de Leão tinha a certeza de que jamais o mordomo-mor do Condado Portucalense iria
trair o seu amado príncipe!
Porém, a verdade era-lhe irrelevante,
bastava a mera suspeita, uma espécie de veneno verbal. Política impura. O potencial
fabuloso da lenda estava em lançar a história contra Afonso Henriques, para o diminuir
e enfraquecer, minando a sua autenticidade aos olhos de portucalenses, aliados e
inimigos. O que acharia o papa Inocêncio II desta possibilidade escandalosa? Que
reacção teriam os templários impulsionados por Bernardo de Claraval, abade de Cluny
e Cister, sempre prontos a apoiarem Afonso Henriques? O que diriam dele os muçulmanos
como Ismar, Abu Zhakaria ou as princesas de Córdova? E os portucalenses
gostariam de saber que, em Ourique, tinham aclamado rei um usurpador? Se a intriga
de Compostela fosse expandida pela Cristandade, a boa estrela de Afonso
Henriques seria manchada por uma escura nódoa». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
Cortesia da CasadasLetras/JDACT