Cortesia
de wikipedia
Carcassonne
«Ele
estava atrasado. Havia escurecido e ele não tinha
lanterna, mas as chamas da cidade lançavam um brilho sinistro que chegava ao
fundo da igreja e iluminava apenas o suficiente para mostrar as lajes de pedra
na cripta funda onde o homem golpeava o chão com um pé de cabra. Estava a abrir
uma pedra gravada com um brasão que mostrava um cálice cercado por um cinto
afivelado onde estava escrito Calix Meus Inebrians.
Raios de sol esculpidos no granito davam a impressão de que o cálice irradiava
uma luz. O relevo e a inscrição estavam desgastados pelo tempo, e o homem mal
os havia percebido, embora ouvisse os gritos vindos
dos becos ao redor da igrejinha. Era uma noite de fogo e sofrimento, e os
gritos abafavam os ruídos dos seus golpes no extremo da pedra, enquanto ele
tentava lascar um pequeno espaço em que poderia enfiar o comprido pé de cabra.
Golpeou com a barra de ferro, depois imobilizou-se ao escutar gargalhadas e
passos na igreja em cima. Encolheu-se atrás de uma passagem em arco logo antes
de dois homens descerem à cripta. Carregavam uma tocha acesa que iluminou o
comprido espaço em arco e revelou que não havia saques fáceis à vista. O altar da
cripta era de pedra simples, sem nada além de uma cruz de madeira como
decoração, não tinha sequer um candelabro. Um dos homens disse algo numa língua
estranha, o outro gargalhou, e os dois voltaram para a nave, cujas paredes
pintadas e altares conspurcados estavam iluminados pelas chamas das ruas. O
homem com o pé de cabra usava capa e capuz pretos. Por baixo da capa pesada
havia um hábito branco manchado de pó, e era preso na cintura por uma corda com
três nós. Era um frade, um dominicano, mas nesta noite isso não serviria de
protecção contra o exército que devastava Carcassonne. Era alto e forte, e
antes de ter feito os votos havia sido um homem de armas. Sabia como estocar
com uma lança, cortar com uma espada ou matar com um machado. Na época chamava-se
Sire Ferdinand de Rodez, mas agora era simplesmente o frei Ferdinand.
Antigamente usara cota de malha e
placas, cavalgara em torneios e matara em batalha, mas fazia 15 anos que era
frade e rezava diariamente pelo perdão dos seus pecados. Agora estava velho,
com quase 60 anos, mas ainda tinha ombros largos. Havia caminhado para chegar a
esta cidade, mas as chuvas tinham prolongado a sua jornada, inundando os rios e
tornando os vaus intransponíveis, e era por isso que estava atrasado. Atrasado
e cansado. Enfiou o pé de cabra por baixo da pedra com relevos e fez força de
novo, temendo que o ferro se dobrasse antes que ela cedesse, então houve um som
áspero e o granito se levantou, em seguida deslizou de lado, oferecendo uma
pequena abertura.
O espaço estava escuro porque a luz demoníaca da cidade em
chamas não podia entrar na sepultura, de modo que o frade se ajoelhou junto ao
buraco e enfiou a mão. Encontrou madeira, por isso usou o pé de cabra de novo.
Um golpe, dois golpes, e a madeira lascou-se, e ele rezou para que não houvesse
um caixão de chumbo ali dentro. Golpeou com o pé de cabra uma última vez,
depois enfiou a mão e puxou pedaços de madeira para fora do buraco. Não havia
caixão de chumbo. Os seus dedos, penetrando mais na tumba, encontraram um
tecido que se desfez ao ser tocado. Depois sentiram ossos. Os dedos exploraram
uma órbita ocular seca, dentes soltos, e descobriram a curva de uma costela.
Deitou-se para esticar o braço mais fundo, tacteou no negrume da sepultura e
encontrou alguma coisa sólida que não
era osso. Mas não era o que ele procurava; tinha a forma errada. Era um
crucifixo. De repente soaram vozes altas na igreja. Um homem gargalhou e uma
mulher soluçou. O frade ficou deitado imóvel, ouvindo e rezando. Por um momento
desanimou, pensando que o objecto que procurava não estava no túmulo, mas então
estendeu a mão o mais longe que conseguia e os seus dedos tocaram algo envolto num
pano fino que não se desfez. Remexeu-se desajeitadamente no escuro, segurou o
pano e puxou. Havia um objecto pesado embrulhado no tecido, e ele puxou-o
lentamente, depois segurou-o direito e soltou o objeto das mãos do esqueleto
que o estavam prendendo. Tirou a coisa da tumba e levantou-se. Não precisava
desembrulhá-lo. Sabia que havia encontrado la Malice e, agradecendo, voltou-se para o altar
simples no lado leste da cripta e fez o sinal da cruz.
Obrigado, Senhor, disse num murmúrio, e obrigado, São
Pedro, e obrigado, São Juniano. Agora me mantenham em segurança. O frade
precisaria de ajuda celestial para se manter seguro. Por um momento pensou em esconder-se
na cripta até que o exército invasor deixasse Carcassonne, mas isso poderia
demorar dias, e, além do mais, assim que os soldados tivessem saqueado tudo que
estivesse ao seu alcance, abririam os túmulos na cripta em busca de anéis,
crucifixos ou qualquer outra coisa que rendesse uma moeda. A cripta havia
abrigado la
Malice durante
um século e meio, mas o frade tinha consciência de que ela não lhe daria
segurança por mais do que algumas horas. O frei Ferdinand abandonou o pé de
cabra e subiu a escada. La Malice tinha o mesmo comprimento do seu braço e
era surpreendentemente pesada. Antigamente era equipada com um cabo, mas
restava apenas a fina espiga de metal, e ele segurou-a por esse suporte
grosseiro. Ainda estava envolta no que ele achou que fosse seda.
A nave da igreja estava iluminada pelas casas que ardiam na
pracinha do lado de fora. Havia três homens dentro da igreja, e um deles gritou
interpelando a figura de capa escura que surgiu vinda da escada da cripta. Os
três eram arqueiros, e os seus arcos longos estavam encostados no altar, mas,
apesar da interpelação, não se interessaram realmente pelo estranho, só pela
mulher que tinham posto de pernas abertas nos degraus do altar. Por um instante
o frei Ferdinand ficou tentado a salvar a mulher, mas então quatro ou cinco
outros homens entraram por uma porta lateral e gritaram de alegria ao ver o
corpo nu estendido nos degraus. Tinham trazido outra jovem, uma garota que
gritava e lutava, e o frei estremeceu ao ouvir o som do seu sofrimento. Ouviu
as roupas dela sendo rasgadas, ouviu-a gemer e lembrou-se de todos os seus
próprios pecados. Fez o sinal da cruz. Perdoai-me, Cristo Jesus, sussurrou e,
incapaz de ajudar as jovens, passou
pela porta da igreja e saiu para a pequena praça». In Bernard
Cornwell, 1356, 2012, Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-371-1.
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