O
caminho da Esperança. Catalunha. Dezembro de 1269
«(…)
Enquanto frei Gil se dirigia ao coro para entoar os salmos de Completas,
frei Arnaldo, ainda envolto nos pensamentos que durante todo o dia o haviam
perturbado, enrolou-se no manto e tentou conciliar o sono. No dia seguinte, esperava-o
uma caminhada de cinco léguas, em terreno acidentado ao longo do Segre, antes
de atingir Oliana, onde se centravam todas as suas actuais preocupações. Ouviam-se
os primeiros louvores dos salmos de Primas, quando, sob um céu estrelado
que lhe recordava as noites da sua juventude em torno da fogueira nos campos de
S. João de Acre, dirigiu a montada para o Caminho de Serradal, como se o velho
Musa não conhecesse o caminho que devia trilhar, mesmo com os seus grandes
olhos amendoados e doces totalmente fechados.
Tinha
pressa em chegar, mas, ao mesmo tempo, quase retinha o trote do fiel
companheiro, com temor de atingir Oliana. Dir-se-ia que o seu propósito era
tornar eterna aquela cavalgada, como quem tem o fruto do seu desejo ao alcance
da mão, mas hesita em colhê-lo. Talvez com receio de não saber o que fazer com
ele ou, pior ainda, com medo de atingir o fim, desconhecendo o que fazer com
ele ou, pior ainda, com medo de atingir o fim, desconhecendo o que possa estar
para além dele. Quem sabe se perguntando se o facto de atingir o objectivo é
realmente um fim ou, pelo contrário, o recomeço de uma nova caminhada, na
eterna busca de um reino interior, como lhe haviam ensinado os seus mestres, ao
longo do noviciado e do tempo de provas que antecedera a velada de armas em
Richerenches.
Enquanto
cavalgava em direcção a Castellnou, recordava a noite em que, dezassete anos
antes, após um banho purificador, se vira prostrado no silêncio da vigília
nocturna que o devia conduzir à descoberta dos seus próprios demónios interiores,
antes de receber a tonsura e o abraço e beijo fraternais que acompanhavam a
imposição da espada sobre os ombros, para se tornar cavaleiro. Recordou todos
os pormenores do seu embarque no porto da Comenda de Toulon, a sua viagem ao
Ultramar, a chegada a S. João de Acre e as constantes incursões em território
inimigo, num jogo sem estratégia de que se adivinhava o fim próximo, como se
tornava claro para muitos dos seus irmãos. Ah! Ah! Ah!... Estremeceu com o
próprio sarcasmo ao cantarolar o poema escrito por seu irmão Ricaut Bonomel,
após a conquista do castelo de Arsuf pelo sultão mameluco Baibars e que, poucos
dias antes, ouvira em Gardeny:
A
ira e a dor estão tão firmes no meu coração...
Que
nem a cruz nem a 1ei me valem nem guiam
Contra
os Turcos do diabo que Deus amaldiçoe
Pois,
mais me parece, segundo um homem pode ver
Que
Deus contra nós os deseja proteger.
O
papa faz do perdão grande largueza
Contra
os Lombardos, a Carlos e aos Franceses
Enquanto
mostra grande moderação connosco
Que
a nossa Cruz perdoa por torneses.
E
quem quiser trocar a romaria à Terra Santa
Pela
guerra da Lombardia
O
nosso legado lho permitirá
Pois
vendem Deus e o perdão por haveres.
De
súbito, a claridade que lentamente vinha invadindo o vale e lhe permitia distinguir,
cada vez mais nitidamente, os refinados bordados das teias de aranha entre os
ramos dos arbustos nus, perlados com inúmeras gotículas de orvalho,
manifestou-se num clarão de luz, quando o astro-rei se mostrou em todo o seu
esplendor sobre os picos da Serra de Oden. Nunca se cansava do espectáculo proporcionado
pela natureza, a eterna mãe, quando explodia, assim, em borbotões coloridos.
Parecia-lhe que todo o conhecimento do universo se concentrava naquele momento,
para ser colocado à disposição de quantos o soubessem ler e, então, o peito
enchia-se-lhe de ternura por todos os seres, vivos ou inanimados.
Terá
sido esse sentimento a fazer-lhe recordar as longas conversas que, em torno da
fogueira nas noites da Galileia, manteve com o velho sufi Ibn Arabi sobre a
essência de Amor, como única via possível de união entre o Homem e Deus.
Lembrava agora quão parecidas eram as suas palavras às dos Fideli d’Amore
da sua querida Provença, onde a quente língua d’Oc apenas rivalizava com
a dos pássaros nos seus gorgeios encantados». In António Balcão Vicente, O
Templário d’El-Rei, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-288-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT