domingo, 27 de maio de 2018

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «O próprio bispo de Lisboa, Martinho Costa, com ar inocente, chegou a elogiar a perfeição física do cavalo e da onça, observando que esta se assemelhava a um gato grande»

jdact

«(…) Acabastes de me comover, meu senhor, confessou João Faria, com as mãos cruzadas sobre o peito, antes de perguntar qual o sentido a dar às palavras e de quanto tempo dispunha para elas. Apenas umas palavras breves, muito breves. Quanto ao sentido nem é preciso dizer-vos qual deverá ser, respondeu o monarca, impositivo, sobranceiro. Depois de pronunciar outra acentuada vénia, João Faria retirou-se e foi colocar-se na rectaguarda dos restantes membros da comitiva, para aí, de costas voltadas ao rio, sozinho, concentrado, estruturar à pressa o discurso e desacelerar o ritmo do coração. Entretanto, à medida que as sete naus se aproximavam do Cais da Ribeira ia aumentando o clamor da multidão numa espiral sempre crescente de fascínio e festa. Muitas pessoas, porventura as mais religiosas ou as mais tementes, ajoelharam-se, de mãos postas, em oração, os homens tiraram os gorros da cabeça, e o rei, cada vez mais inquieto, repetia a cada instante e só para si: que beleza, Senhor! Deus está connosco! Louvado sejas Tu. Até que ao meio-dia em ponto, hora a que, por mera coincidência ou graça do Altíssimo, Manuel I viera ao mundo no já distante trinta e um de Maio de mil quatrocentos e sessenta e nove, a primeira nau acostou ao cais. Uma salva de artilharia troou nos céus de Lisboa, a que se seguiu de imediato o toque dos sinos em todas as igrejas e capelas da cidade. E quando os canhões deixaram de disparar e a segunda caravela atracou ao pontão do molhe, mesmo em frente a Sua Alteza, todos se calaram, talvez por medo, talvez de espanto. Ali vinha o elefante, uma fera corpulenta, disforme, medonha, um animal nunca visto pelos portugueses. E todos se benzeram.
Santo Deus!, desembuchou o rei ao ver aquele bicho imenso, brutal, que de tanta imperfeição só podia ser concebido pela mão do Demónio. E virando-se para Diogo Pacheco e Garcia Resende, os que estavam mais próximos dele, perguntou alarmado: é isto que vou mandar a Sua Santidade!? Aquilo é um tesouro, Alteza, avisou Diogo Pacheco, tentando pôr cobro à desconfiança do soberano. O que ali vedes é um valiosíssimo tesouro que simboliza a vitória da descoberta de novas terras, um verdadeiro testemunho da chegada das vossas naus ao outro lado do mundo. Receio que o sapientíssimo Santo Padre se assuste..., voltou a desabafar o rei, mas agora sorridente. Que presente mais fabuloso do que este lhe poderíeis oferecer, meu senhor!?, questionou entretanto Garcia Resende, afirmando-se na certeza de que o Sumo Pontífice iria apreciar, e muito, tão admirável oferenda. Numa atitude de intranquila coragem, Manuel I confessou que não tinha medo da fera e já sabia que a besta era imponente, mas tanto jamais imaginara. E queixava-se de que nunca ninguém lha tinha descrito com a devida precisão.
Não foram apenas o rei e alguns cortesãos a assustar-se vagamente com o porte fantástico do elefante. Houve padres que, ao verem o animal, foram recolher-se nas igrejas, convencidos de que ele encarnava a imagem sinistra de Satanás ou, não sendo bem assim, que possuía pelo menos a marca da sua inspiração. Do mesmo modo e por razões idênticas à dos sacerdotes em disfarçada fuga, algumas mulheres, porventura as mais sensíveis ao pânico e ao horror, caíram desmaiadas no chão frio e húmido da margem do rio. Menos assustadora foi, porém, a chegada das terceira e quarta naus sobre cujos convés viajavam um cavalo e uma onça enviada ao monarca português pelo rei de Ormuz. O próprio bispo de Lisboa, Martinho Costa, com ar inocente, chegou a elogiar a perfeição física do cavalo e da onça, observando que esta se assemelhava a um gato grande. Mas quando um marinheiro cometeu a graça de lhe lançar duas galinhas moribundas, levadas a bordo, e o animal se atirou a elas, retraçando-as num ápice, todos no pontão do cais estremeceram. O próprio soberano, amedrontado, recuou um passo.
Não tenhais medo, meu senhor, aconselhou o capitão da esquadra, Nuno Fernandes Ataíde, que se encontrava já desembarcado na plataforma do cais ao lado do rei. A fera é mansa, vem domesticada e presa. Achais? Posso garantir-vos, Alteza, voltou a afirmar ao monarca, sobre cuja testa lívida escorriam duas gotas de suor. Bom, ela também não vai ocupar os meus aposentos..., ironizou o rei. Todos à volta riram com a graça». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
Cortesia de OdoLivroE/JDACT