domingo, 6 de maio de 2018

A Sagrada Família. Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). «Na realidade há, nas fábricas inglesas, todas as gradações de salário, de um e meio xelim a 40 xelins e inclusive mais; na Crítica paga-se apenas um salário»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Crítica crítica sob a feição do mestre encadernador ou a Crítica crítica conforme o senhor Reichardt. Friedrich Engels
«(…) E a intrepidez estilística do senhor Reichardt anda lado a lado com a intrepidez do raciocínio em si. Ele é capaz de entabular transições como as que seguem: o senhor Brüggemann..., ano de 1843..., teoria do Estado..., todo o probo..., a grande modéstia de nossos socialistas..., milagres naturais..., exigências a serem expostas à Alemanha..., milagres sobrenaturais..., Abraão..., Filadélfia..., maná..., mestre-padeiro..., mas porque nós estamos a falar de milagres, Napoleão logrou etc.
Depois dessas amostras, não é de estranhar, nem um pouco, aliás, que a Crítica crítica sempre ofereça uma explicação à frase que ela mesma considera um modo popular de se exprimir. Pois ela apetrecha os seus olhos com a força orgânica de penetrar o caos. E, sendo assim, resta dizer que nem mesmo o modo popular de se exprimir da Crítica crítica pode restar incompreensível no final. Ela se dá conta de que o caminho dos literatos permanece torto, caso o sujeito que o percorrer não se mostrar forte o suficiente a ponto de conseguir endireitá-lo e, por isso, atribui com naturalidade operações matemáticas ao escritor. Per si se compreende, e a história, que prova tudo o que per si se compreende, prova também isso: que a Crítica não se torna massa a fim de permanecer massa, mas para libertar a massa de sua massificação massiva, ou seja, para elevar o modo popular de se exprimir na linguagem crítica da Crítica crítica. Este é o estágio mais estagiário da humilhação, quando a Crítica aprende a linguagem popular das massas e transcende esse jargão tosco para o cálculo superabundante da dialéctica criticamente crítica.

 A Crítica crítica na condição de moinhotenente. Friedrich Engels
Depois de a Crítica se ter rebaixado até ao absurdo em línguas estrangeiras, de ter prestado à autoconsciência os serviços mais essenciais, e ao mesmo tempo ter libertado o mundo do pauperismo através disso, ela se rebaixa também ao absurdo na práxis e na história. Ela se apossa das questões inglesas do dia e nos oferece um esboço da história da indústria inglesa, que é genuinamente crítico. A Crítica, que se basta a si mesma, que se completa e encerra em si mesma, naturalmente não pode reconhecer a história tal como ela de facto aconteceu, pois isso significaria reconhecer a massa ruim em toda a sua massificação massiva, quando se trata justamente de libertar a massa da massificação. Com isso, a história é libertada de sua massificação, e a Crítica, que adopta uma atitude livre em relação ao seu objecto, grita para a história: tu deves ter ocorrido de tal ou qual modo! As leis da Crítica têm, todas elas, efeito retroactivo; antes dos seus decretos, a história ocorria de modo bem diferente do que passou a ocorrer depois deles. Eis aqui por que a história massiva, a chamada história real, desvia-se da maneira significativa da crítica, que passa a acontecer a partir da página 4 do Caderno VI do Jornal Literário Geral.
Na história massiva não houve nenhuma cidade fabril antes de haver fábricas; mas na história crítica, na qual o filho gera o próprio pai, coisa que já acontecia em Hegel, aliás, Manchester, Bolton e Preston são florescentes cidades fabris, antes mesmo de se ter pensado em fábricas. Na história real, a indústria de algodão foi criada sobretudo graças à Jenny de Hargreaves e à throstle (máquina hidráulica de fiar) de Arkwright, ao passo que a mule de Crompton não foi mais que um aperfeiçoamento da Jenny através do princípio descoberto por Arkwright; mas a história crítica sabe distinguir, despreza a unilateralidade da Jenny e da throstle e dá a coroa à mule, fazendo dela a identidade especulativa do extremo. Na realidade, a invenção da throstle e da mule trouxe consigo de imediato a utilização da força hidráulica para esse tipo de máquinas, mas a Crítica crítica diferencia os princípios amontoados e confusos da história bruta e faz com que a utilização apareça apenas bem mais tarde, como se fosse algo bastante particular. Na realidade a descoberta da máquina a vapor precedeu todas as descobertas acima citadas, mas na Crítica vemos que ela ocorre no final, na condição de coroa para o todo.
Na realidade, a aliança de negócios entre Liverpool e Manchester foi, no seu significado actual, a consequência da exportação de mercadorias inglesas; na Crítica essa aliança de negócios é a causa desse fenómeno e ambas, aliança e exportação, a consequência do facto de aquelas duas cidades serem vizinhas. Na realidade, quase todas as mercadorias saem de Manchester, passam por Hull ao continente; na Crítica elas passam por Liverpool. Na realidade há, nas fábricas inglesas, todas as gradações de salário, de um e meio xelim a 40 xelins e inclusive mais; na Crítica paga-se apenas um salário ao trabalhador: 11 xelins. Na realidade a máquina substitui o trabalho manual; na crítica ela substitui o acto de pensar. Na realidade uma união dos trabalhadores com o objectivo de aumentar o salário é permitida na Inglaterra; mas na Crítica ela é proibida, uma vez que a massa tem, ela mesma, de perguntar à Crítica, se quiser se permitir tomar uma atitude. Na realidade o trabalho na fábrica fatiga de maneira significativa o trabalhador e origina enfermidades típicas, há, inclusive, várias obras medicinais que tratam exclusivamente dessas enfermidades; na crítica o esforço excessivo não impede nem estorva o trabalho, pois a força é empreendida toda ela pela máquina. Na realidade a máquina é uma máquina; na Crítica ela é dotada de vontade, pois, uma vez que ela não descansa, o trabalhador também não pode descansar e torna-se súdito de uma vontade estranha». In Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), A Sagrada Família, A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes, 1844, 1965, Boitempo Editorial, 2003, ISBN 978-857-559-032-4.

Cortesia de BoitempoEditorial/JDACT