Manuel
I e o fim da tolerância religiosa (1496 - 1497)
«(…)
Os judeus
Os primórdios da fixação judaica
na Península Ibéria estão envoltos em lendas posteriores. A partir do século XI,
vários autores judeus fazem remontar as origens dos judeus sefardiças à
destruição do Segundo Templo de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C., e às vezes
até mesmo à destruição do Primeiro Templo, no século VI a.C., por
Nabucodonosor, o rei da Babilónia. Depois das suas vitórias, estes
conquistadores terão deportado milhares de judeus para a Espanha. A
autenticidade histórica destas afirmações é, obviamente, impossível de confirmar.
Como todos os mitos fundadores, estes relatos serviam o duplo propósito de
fornecer aos judeus ibéricos uma lenda de origem que estabelecesse as suas
ligações à história comum de todos os judeus e, ao mesmo tempo, os distinguisse
dos seus correligionários fora da Península Ibérica.
Além das lendas e do folclore, a
única certeza é que a presença judaica na Ibéria antecede, em muitos séculos,
não só a conquista islâmica mas também a fundação de Portugal. A hipótese mais
provável é a de que a fixação de judeus na Península Ibérica tenha ocorrido no
primeiro ou segundo séculos da era cristã, quando membros da diáspora judaica
se espalharam pelo Império Romano. Já no início do século IV, em 303 ou 306
d.C.. o Concilio de Elvira promulgara legislação antijudaica. A prova
arqueológica mais antiga confirmando a existência de judeus na Península
Ibérica é uma inscrição descoberta em Toledo e datada do século III d.C.. Por
outro lado, os indícios arqueológicos do estabelecimento de judeus na região
que mais tarde viria a ser o reino medieval de Portugal remontam ao reino
visigótico pós-romano. Uma estela funerária com inscrições hebraicas descoberta
em Espiche, perto de Lagos no Algarve, foi datada dos séculos VI ou VII d.C..
Mais recentemente, uma inscrição lapidar em latim exibindo a representação de
um candelabro de sete braços, ou menörah, e datada de 480 d.C., foi
descoberta em Mértola, no Alentejo.
Entre os séculos VIII e XI, não
existem quaisquer dados referentes a judeus vivendo ao longo da costa atlântica
da Península Ibérica. Só podemos presumir que os judeus nesta zona permaneceram
in situ depois da rápida conquista islâmica de 711-715 e, como outras
comunidades judaicas na Península, certamente se adaptaram ao novo poder. Sob o
domínio muçulmano, os judeus da região que mais tarde seria Portugal ter-se-iam
juntado à população cristã local como dhimmis: povos do Livro protegidos
que beneficiavam da tolerância oficial em troca de um imposto individuai
especial: a jizya. A primeira prova documental de judeus estabelecidos
na zona é uma referência casual a habitantes judeus em Coimbra em 950, durante
o período em que aquela cidade se encontrava sob o domínio cristão. O foral de
Santarém em 1095 incluía uma lei punindo o homicídio de judeus. Outros forais confirmam
plenamente a presença de judeus em Coimbra durante os séculos XI e XII. No
entanto, não se sabe se estes judeus chegaram com os conquistadores cristãos ou
se pertenciam à população local das cidades conquistadas.
Organização comunitária: judiarias,
mourarias e comunas
Os documentos em língua
portuguesa dos séculos XIV e XV distinguiam claramente dois conceitos: as
comunas de judeus ou de mouros e a judiaria e a mouraria. Embora comuna e
judiaria/mouraria sejam muitas vezes confundidas, estes termos, na verdade,
tinham dois significados muito diferentes.
Judiarias e mourarias
Os documentos régios e não régios
empregavam as palavras judiaria e mouraria para designar zonas geográficas
em cidades, ruas, subúrbios e bairros, onde residiam habitantes judeus e
muçulmanos. Inicialmente, estes termos foram usados provavelmente para descrever
áreas onde membros de uma comunidade tendiam naturalmente a agrupar-se. No
século XIV, contudo, as judiarias e mourarias tornaram-se zonas segregadas onde
judeus e muçulmanos eram obrigados por lei a residir. Pedro I (1357-1367)
decretou, em 1361, que, sempre que a população de qualquer das minorias
ultrapassasse os dez indivíduos, estes deviam a partir de então residir apenas
nas suas respectivas judiarias ou mourarias. Os membros de ambas as minorias
eram obrigados a permanecer nos seus bairros depois de os sinos das igrejas
tocarem para as vésperas ao cair da noite e não podiam sair, sob pena de uma
pesada multa ou um açoite público para os reincidentes. Para reforçar ainda
mais a sua separação física dos habitantes cristãos, foram erguidos muros e
portões em redor desses bairros. As judiarias e mourarias maiores gozavam de mais
serviços comunitários. As comunidades judaica e muçulmana de Lisboa tinham os
seus próprios talhos, hospitais, escolas, banhos públicos e, nalguns casos, até
bordéis e prisões. Um cemitério comunitário isolado situava-se, normalmente, a
alguma distância da judiaria ou da mouraria». In François Soyer, A Perseguição
aos Judeus e Muçulmanos de Portugal, 2007, Edições 70, 2013, ISBN
978-972-441-709-7.
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