«(…) Colin junta-se a François no
convés. Tasquinha um pedaço de pão seco. Ao debruçar-se da amurada, explode
numa risada. Lá em baixo, o capitão do navio admoesta ferozmente alguns dos seus
marinheiros que, ébrios, regressam dos lupanares. Pontapeia-os energicamente nas
nalgas. Os homens, demasiado bebidos para protestar, deixam-se empurrar e tocar
como gado. Colin aponta com o dedo para terra. Acaba de aparecer uma sombra
rápida no cais. Um jovem monge, cujo corpo esgalgado nada num hábito de burel demasiado
largo, saltita a passo miúdo aproximando-se do barco. Depois de transpor agilmente
o passadiço, avança direito a Colin e François, e, sem preâmbulos, começa a
segredar-lhes breves instruções. Tem o ar seguro de si dos noviços de boas famílias.
A sua atitude é completamente isenta de humildade, sequer afectada. O propósito
da vossa visita à Terra Santa tem de manter-se secreto. Fareis a viagem como
simples peregrinos. Vejo que já tendes a concha dos penitentes piedosos de Santiago
de Compostela. Villon e Colin contentam-se com trocar um sorriso cúmplice. As conchas
que trazem penduradas do pescoço por atilho de couro não têm gravada a imagem da
cruz. O rebordo tem uma orla de ouro fino, e, no interior da cavidade, um entalhe
representa um punhal que trespassa um coração. Não se trata de uma medalha que
comemore algum mártir ou calvário. Só temíveis bandidos ou guardas sagazes desembainhariam
as suas armas à vista desse adorno, reconhecendo nele, as mais das vezes já
tarde, a insígnia dos coquillards.
O mensageiro estende-lhes uma
carta fechada. François estremece. O documento ostenta o selo de Cosme de Médicis
entrelaçado por uma divisa em hebraico, exactamente como na encadernação que ele
entreviu no fundo da oficina de Fust. François interroga imediatamente o jovem monge
sobre o que significa o emblema. O noviço parece embaraçado. Tudo o que sabe é que
se trata de um selo que vem da biblioteca pessoal de Cosme. O seu uso é reservado
às obras que chegam da Palestina. Colin faz um sinal da cruz sobre o peito e balbucia
uma bênção devota. A palavra Palestina desperta nele emoções confusas. Ressuscita-lhe
memórias do catecismo. Sem fazer a mais pequena ideia de como possa ser o país da
Bíblia, representa-o misterioso e esplêndido. No seu espírito, o Carmelo é uma
montanha imensa com os cumes ornados de cruzes gigantescas que trespassam as
nuvens. A Samaria é um jardim edénico, cheio de flores de mil cores, onde brincam
jumentos brancos e ovelhas de lã encaracolada. Sem esquecer as hidras e os ciclopes.
Assim que o religioso se afasta, Villon
apressa-se a quebrar o selo. O lacre esboroa-se em pequenas migalhas vermelhas que
se espalham no chão do convés. François desdobra a carta. Um simples debuxo a carvão
indica um itinerário que leva do porto de São João de Acre a um planalto isolado
da Baixa Galileia. Não ao Monte das Oliveiras. Decepcionado, Villon observa os pedaços
de lacre que a brisa varre já para a vante do navio. Arrepende-se de ter destruído
tão precipitadamente a insígnia do selo. Ao seu lado, Colin pragueja e
resmunga. Não haverá, então, banquete de boas-vindas em honra dos emissários do
rei de França?
A embarcação
aparelha ao romper do dia. Um cabo vocifera as ordens da manobra. Ainda ensonados,
os homens soltam um rosário de pragas antes de subirem aos mastros. Após a saída
do porto, a ondulação torna-se mais vigorosa, fazendo com que as velas estalem como
chicotes. O capitão mantém-se ao abrigo da mezena, para se certificar de que se
evitarão os escolhos. Quando se assegura de que a embarcação alcançou o mar
alto, brada ao seu imediato: rumo à Terra Santa, senhor Martin!» In
Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira,
Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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