quarta-feira, 23 de maio de 2018

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «A embarcação aparelha ao romper do dia. Um cabo vocifera as ordens da manobra. Ainda ensonados, os homens soltam um rosário de pragas antes de subirem aos mastros»

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«(…) Colin junta-se a François no convés. Tasquinha um pedaço de pão seco. Ao debruçar-se da amurada, explode numa risada. Lá em baixo, o capitão do navio admoesta ferozmente alguns dos seus marinheiros que, ébrios, regressam dos lupanares. Pontapeia-os energicamente nas nalgas. Os homens, demasiado bebidos para protestar, deixam-se empurrar e tocar como gado. Colin aponta com o dedo para terra. Acaba de aparecer uma sombra rápida no cais. Um jovem monge, cujo corpo esgalgado nada num hábito de burel demasiado largo, saltita a passo miúdo aproximando-se do barco. Depois de transpor agilmente o passadiço, avança direito a Colin e François, e, sem preâmbulos, começa a segredar-lhes breves instruções. Tem o ar seguro de si dos noviços de boas famílias. A sua atitude é completamente isenta de humildade, sequer afectada. O propósito da vossa visita à Terra Santa tem de manter-se secreto. Fareis a viagem como simples peregrinos. Vejo que já tendes a concha dos penitentes piedosos de Santiago de Compostela. Villon e Colin contentam-se com trocar um sorriso cúmplice. As conchas que trazem penduradas do pescoço por atilho de couro não têm gravada a imagem da cruz. O rebordo tem uma orla de ouro fino, e, no interior da cavidade, um entalhe representa um punhal que trespassa um coração. Não se trata de uma medalha que comemore algum mártir ou calvário. Só temíveis bandidos ou guardas sagazes desembainhariam as suas armas à vista desse adorno, reconhecendo nele, as mais das vezes já tarde, a insígnia dos coquillards.
O mensageiro estende-lhes uma carta fechada. François estremece. O documento ostenta o selo de Cosme de Médicis entrelaçado por uma divisa em hebraico, exactamente como na encadernação que ele entreviu no fundo da oficina de Fust. François interroga imediatamente o jovem monge sobre o que significa o emblema. O noviço parece embaraçado. Tudo o que sabe é que se trata de um selo que vem da biblioteca pessoal de Cosme. O seu uso é reservado às obras que chegam da Palestina. Colin faz um sinal da cruz sobre o peito e balbucia uma bênção devota. A palavra Palestina desperta nele emoções confusas. Ressuscita-lhe memórias do catecismo. Sem fazer a mais pequena ideia de como possa ser o país da Bíblia, representa-o misterioso e esplêndido. No seu espírito, o Carmelo é uma montanha imensa com os cumes ornados de cruzes gigantescas que trespassam as nuvens. A Samaria é um jardim edénico, cheio de flores de mil cores, onde brincam jumentos brancos e ovelhas de lã encaracolada. Sem esquecer as hidras e os ciclopes.
Assim que o religioso se afasta, Villon apressa-se a quebrar o selo. O lacre esboroa-se em pequenas migalhas vermelhas que se espalham no chão do convés. François desdobra a carta. Um simples debuxo a carvão indica um itinerário que leva do porto de São João de Acre a um planalto isolado da Baixa Galileia. Não ao Monte das Oliveiras. Decepcionado, Villon observa os pedaços de lacre que a brisa varre já para a vante do navio. Arrepende-se de ter destruído tão precipitadamente a insígnia do selo. Ao seu lado, Colin pragueja e resmunga. Não haverá, então, banquete de boas-vindas em honra dos emissários do rei de França?
A embarcação aparelha ao romper do dia. Um cabo vocifera as ordens da manobra. Ainda ensonados, os homens soltam um rosário de pragas antes de subirem aos mastros. Após a saída do porto, a ondulação torna-se mais vigorosa, fazendo com que as velas estalem como chicotes. O capitão mantém-se ao abrigo da mezena, para se certificar de que se evitarão os escolhos. Quando se assegura de que a embarcação alcançou o mar alto, brada ao seu imediato: rumo à Terra Santa, senhor Martin!» In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT