sábado, 26 de maio de 2018

1Q84. Haruki Murakami. «Do banco do passageiro, a garotinha do Suzuki vermelho, com o rosto fora da janela, olhava boquiaberta para Aomame. Voltando-se para a mãe, perguntou: olha lá…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Aomame contraiu levemente o rosto, olhou o relógio de pulso e os carros em redor. À direita havia um Mitsubishi Pajero preto, coberto por uma fina camada de poeira esbranquiçada. No banco do acompanhante, um rapaz fumava um cigarro com a janela aberta, com ares de entediado. Os seus cabelos eram compridos, tinha a pele bronzeada e vestia uma jaqueta carmesim. Na bagageira havia várias pranchas de surf usadas e sujas. Na frente desse carro havia um Saab 900 cinza. As janelas com películas estavam totalmente fechadas e, de fora, não se enxergavam as pessoas no seu interior. A carroceria estava tão polida que daria para ver o seu rosto reflectido nela. Na frente do táxi em que Aomame estava, havia um Suzuki vermelho, com a traseira levemente amassada e a placa de Nerima. Uma jovem mãe estava ao volante. A criança, aborrecida, andava sobre o banco de trás, de um lado para o outro. A mãe, parecendo irritada, chamava-lhe a atenção. Os movimentos labiais podiam ser lidos através dos vidros. O cenário era o mesmo de dez minutos atrás. Nesses dez minutos, os carros não tinham avançado sequer dez metros.
Aomame pensou um pouco. Organizou mentalmente as suas prioridades e chegou a uma conclusão. Como se acompanhasse a sua decisão, a música de Janácek passou ao último movimento. Com as prioridades devidamente estabelecidas, Aomame tirou da sua bolsa os óculos de sol Ray-Ban e colocou-os. Depois, pegou em três notas de mil ienes da carteira e entregou-as ao motorista: vou sair aqui. Não me posso atrasar. O motorista concordou e, ao receber o dinheiro, perguntou: a senhora precisa de recibo? Não. Pode ficar com o troco, respondeu Aomame. O motorista agradeceu: muito obrigado. Ao descer as escadas, cuidado para não escorregar. O vento está forte. Tomarei cuidado, disse Aomame. E..., com o rosto voltado para o retrovisor, o motorista disse: nunca se esqueça de que as coisas não são o que aparentam ser. As coisas não são o que aparentam ser, Aomame repetiu a frase mentalmente. Franzindo levemente as sobrancelhas, indagou: o que quer dizer? O motorista respondeu escolhendo cuidadosamente as palavras: convenhamos que isso que você vai fazer não é algo comum, não é verdade? Uma pessoa comum jamais desceria a escada de emergência de uma via expresso em plena luz do dia. Ainda mais sendo mulher. Tem razão, concordou Aomame.
Quando se faz algo incomum, as cenas quotidianas se tornam... Digamos que se tornam ligeiramente diferentes do normal. Isso já aconteceu comigo. Mas não se deixe enganar pelas aparências. A realidade é sempre única. Aomame pensou no que o motorista lhe disse. Enquanto reflectia, a música de Janácek chegava ao fim com uma acalorada e ininterrupta salva de palmas da plateia. A rádio transmitia a gravação ao vivo de um concerto. Por um longo tempo, aplausos reverberaram entusiásticos com intercalados gritos efusivos de Bravo! Aomame imaginou o maestro sorrindo, curvando-se várias vezes diante de toda uma plateia em pé. Ele segue cumprimentando o primeiro violino com um aperto de mão para, em seguida, com os braços erguidos, aplaudir os demais membros da orquestra; e, por fim, voltar-se à plateia curvando-se demoradamente em reverência. Ao ouvir atentamente os aplausos durante um certo tempo, eles passaram a soar como uma ininterrupta tempestade de areia em Marte. A realidade é sempre única, reiterou o motorista, desta vez pausadamente, como que sublinhando algum trecho importante de um texto.
Tem razão, concordou Aomame. Isso mesmo. Um objecto só pode estar num determinado espaço e num determinado tempo. Albert Einstein provou isso. A realidade é sempre objectiva e indubitavelmente única. Aomame apontou para o stéreo do carro e disse: muito bom o som. O motorista concordou e perguntou: Como era o nome do compositor? Janácek. Janácek, repetiu o motorista como se memorizasse uma senha importante para, em seguida, destravar a porta automática do banco de trás. Tenha cuidado. Espero que consiga chegar a tempo. Aomame desceu do carro segurando a sua grande bolsa de couro e, no rádio, os aplausos continuavam ininterruptos. Ela caminhou cuidadosamente pelo canto da via expresso em direcção à saída de emergência, uns dez metros à frente. Todas as vezes que um caminhão grande passava no outro lado da via o chão parecia tremer debaixo dos seus sapatos de salto alto. Tremor que na verdade mais parecia uma ondulação. Era como andar na superfície de um porta-aviões, sobre ondas enfurecidas. Do banco do passageiro, a garotinha do Suzuki vermelho, com o rosto fora da janela, olhava boquiaberta para Aomame. Voltando-se para a mãe, perguntou: olha lá… O que aquela mulher está fazendo? Aonde ela vai? Também quero andar lá fora. Viu mãe, quero sair. Viu mãe..., a garotinha exigia e insistia aos berros para que a mãe a deixasse sair do carro». In Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Casa das Letras, 2011, ISBN 978-972-462-053-4.

Cortesia de CasadasLetras/JDACT