«(…) Eu..., vim dar de comer a Abdalah e ouvi a confusão. O que
se passa? Os cristãos nem esperaram que o cerco estivesse bem montado para
atacarem o bairro de Alcamim. O cerco? Quer dizer que se entenderam uns com os
outros? Sim. Os portugueses estão a montar as suas tendas na colina a noroeste
da cidade, a que está rodeada pelas duas ribeiras. Controlam assim a al-qasbã
e o arrabalde deste lado. Os majus distribuíram-se entre a colina do outro lado
do esteiro e o monte a oriente, em frente ao almocavar. A cidade está
completamente cercada e o porto é controlado pelos barcos deles. Alá nos ajude!
Eu levo-te a casa, anda! Aischa quase concordou. Mas de repente sentiu que não
podia desperdiçar esta oportunidade: leva-me contigo lá para cima, Amir! O
rapaz olhou-a perplexo: mas..., é perigoso demais... Só quero ver o que se
passa. E os cruzados atacaram o bairro de Alcamim, não a cidade. Não vês que os
homens sobre o adarve nem precisam de se defender?Mas... Por favor, Amir! Agarrou-lhe
a mão e sentiu-o estremecer. Queria tanto ver o que se passa!
Com
a mão dela na dele, o rapaz paralisou. E olhava-a como se o encantasse a ideia
de passar alguns momentos com ela. Acabou por concordar: está bem. Mas ficas a
meu lado, entendeste? Aconteça o que acontecer. Nem me passaria outra coisa
pela cabeça. Amir sorriu-lhe, afagando-lhe a mão, e guiou-a pela escada acima. Não
havia muito espaço sobre o adarve, tão cheio estava de homens. Alguns olhavam
espantados para a moça coberta pelo véu azul-celeste, mas não a importunaram,
pois Amir caminhava resoluto com ela pela mão. O rapaz encontrou um lugar vazio
atrás de um merlão, já na zona da alcáçova. E os dois espreitaram com cuidado
para o lado de fora. Os habitantes que restavam no bairro de Alcamim tentavam
defender-se de uma tentativa de assalto perpetrada por alguns cruzados,
arremessando pedras dos terraços das suas casas. O arrabalde ocidental era
conhecido como bairro de Alcamim, devido à sua igreja de Santa Maria de
Alcamim, uma santa moçárabe. Os cruzados, perguntou Aischa, não saberão que os habitantes do bairro são cristãos
como eles? Ora, retorquiu Amir, o que sabem estes homens, vindos de tão longe,
sobre a realidade aqui na nossa Lusbuna?
Os portugueses
bem sabem o que são moçárabes, replicou ela furiosa. Ibn Errik não é o
comandante deste cerco? Porque consente ele numa coisa destas? Não me parece
que seja um ataque planeado. Pelos vistos, os majus mal podiam esperar para
usar as suas armas e lançaram-se ao bairro já meio desabitado. Nisto, alguns
mouros atreveram-se a uma surtida pela bâb al-khawkha, pois urgia defender os
al-huri, os celeiros subterrâneos mais pequenos localizados no flanco da
encosta da alcáçova. Mouros e moçárabes pareciam estar em vantagem devido à sua
situação, por sobre a encosta. Mas cada vez mais cruzados se aventuravam pelas
ruelas íngremes de Alcamim. Alguns lograram mesmo atingir a linha de cintura
defensiva da alcáçova, um caminho que, começando na bâb al-khawkha, circundava
o monte do castelo pelo poente e norte. Os atacados viram-se assim igualmente
cercados pelo lado de cima.
Ao
constatarem que os al-hurí e as suas preciosas reservas estavam perdidos, os
mouros apressaram-se a regressar à
segurança das muralhas, logo fechando a bâb al-khawkha e barrando a entrada à
maior parte dos habitantes de Alcamim, que tentava agora desesperadamente
fugir. Iniciaram-se combates sangrentos pelas ruelas do arrabalde. Os moçárabes
serviam-se de adagas, punhais, ou mesmo de pedras. Este espectáculo não é para
os teus olhos, disse Amir à sua noiva. Anda, vamos... Não te preocupes comigo!
Nada me arrancaria daqui agora. Tenho que ver no que dá esta refrega! O rapaz
observava-a espantado, mas ela quase não notou, concentrada nos acontecimentos.
Até que bradou: muitos moçárabes conseguem fugir, circundam o monte. Não os
podemos seguir?» In Cristina Torrão, A Cruz de
Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT