Ilha
de Hispañola. Natal de 1511
«(…) Sem lhe dar tempo a responder,
Diego apresentou-me: Bartolomeu, o meu tio, irmão do Almirante e primeiro governador
desta ilha nos anos entre 1496 a 1500. Montesinos teve um sobressalto. Olhou-me
a direito nos olhos e pronunciou uma só palavra: porquê? Já o Vice-Rei o empurrava
para a saída. Conto convosco, frei António. Aqui, os equilíbrios são frágeis. Todos
devem manter-se no seu lugar. Como Montesinos abrisse a boca para responder, foi
mandado sair. E na alta sociedade espanhola todos compareceram à missa no domingo
seguinte confiantes, persuadidos de que o incidente estava encerrado.
Durante toda a semana, aquele porquê
não me largou. De cada vez que o expulsava da cabeça, de cada vez ele voltava, como
uma vespa assanhada, de cada vez precedida pela mesma visão: os dois olhos
profundos do pregador. E de noite, por trás dos barulhos familiares do porto, ouvia
um som que não conhecia, como uma roda a pisar a estrada ou uma mó a girar. Acudiu-me
a convicção de que esse Montesinos, maldito seja, tinha reposto o Tempo em movimento.
Ia perder o meu refúgio. Os tormentos da memória, que tanto temia, já não tardariam.
No domingo seguinte, muito antes do início da missa, a ilha inteira, quero dizer
tudo o que a ilha conta de espanhóis, estava reunida diante da entrada do
convento. Muitos tinham vindo de longe, dos cantos mais remotos, da província de
Vega, das montanhas e mesmo da costa norte, da península de Samaná.
A notícia correra célere. Ninguém
queria faltar à prédica. Alguns acabavam de se apear do cavalo. Aspergiam-se com
água da fonte para não entrarem na casa de Deus demasiado cobertos de pó. Não se
viam há lustros. Julgavam-se já falecidos. Soltavam exclamações. Abraçavam-se. Dir-se-ia
uma festa de família. Trocavam-se as últimas más notícias, os óbitos, os nascimentos,
a severidade do clima, a decepção das colheitas, a pobreza das minas. Após duas,
três frases, chegavam aos Índios. À preguiça, à bestialidade, à depravação, à imbecilidade,
à crueldade dos Índios. Depois engatavam no padre louco, transformado em alguns
dias na pessoa mais célebre da ilha. Conhece-lo, tu, esse... Montesinos? Que serpente
o picou? Parece que o Vice-Rei o recebeu. E chamou-o à razão. Senão, terá com quem
se haver. Os semblantes mostravam-se severos. Tinham vindo armados.
Os dominicanos não sabiam para onde
haviam de se virar. A não ser que se apartassem as paredes, na igreja não podia
caber mais ninguém. Já três boas centenas de fiéis tinham sido repelidas, para sua
fúria. E continuavam a chegar mais. Ainda antes que António Montesinos tivesse pronunciado
uma palavra sequer, já a atmosfera estava tumultuosa. Por fim, entre
murmurações, começou a missa. Parece-me, mas não dispunha de um instrumento para
medir o ritmo, que a primeira parte foi acelerada. E de súbito, uma voz forte retiniu
por cima das nossas cabeças. Aí estava Montesinos, chegado ao seu púlpito não se
sabe como. Talvez os seus amigos índios lhe tivessem transmitido a capacidade de
se mover sem ser visto? O púlpito assentava numa grossa serpente de madeira
esculpida. Alguns, na assistência, murmuraram que o maldito pregador firmara um
pacto com o animal para estar protegido da multidão.
Porque mantendes os Índios em tão
cruel servidão? Porque fazeis tão detestáveis guerras a estes povos pacíficos? Porque
os matais exigindo deles um trabalho a que nenhum de vós sobreviveria? Porque não
os vedes como homens, eles, que Deus dotou de uma alma igual à vossa?...
Longe de intimidarem Montesinos, as
recomendações do Vice-Rei tinham-no estimulado. A autoridade da sua palavra
consolidara-se. No domingo anterior, as suas palavras tremiam, não de medo, mas
de indignação. Desta vez trespassavam o ar tão duras e precisas como projécteis.
A assistência reagiu sem demora. Ergueram-se vozes, cada vez mais fortes». In
Erik Orsenna, 2010, A Empresa das Índias, Teorema, 2011, ISBN 978-972.
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