A morte de Lancelot
«(…) A guerra trouxe os inevitáveis
problemas económicos a todos e um apertar dos cintos aos mais pobres, como
sempre. No curral da nossa casa, a horta fornecia o que a terra dava e no canto
este meu pai até plantara um pomar de seis árvores de fruta que faziam a sua vaidade
e que minha mãe também cuidava. Aldonça criava sempre dois porcos para os
enchidos do ano o que, com o tempo quente, trazia um cheiro nauseabundo que entrava
pelas janelas e chegava à rua. Aliás, não era a única. Lisboa está cheia de
hortas, pomares, gaiolas e esterqueiras nos seus currais, o que torna o ar
pestilencial e provoca, com os montouros de lixos, fezes e restos de toda a
espécie das sobras insalubres da vida quotidiana, a peste. Por isso João, depois
de Rei, tanto avisara a Câmara para limpar as ruas e retirar o lixo, queimando-o,
e não só ele, mas nunca surtiu efeito em Lisboa como em outros lugares do
mundo. A sociedade do meu pai sofreu reveses, pois a pirataria oriunda de Cádiz
e Sevilha cobrava-se nos navios cristãos como a moirama e, às vezes, até
dividiam os lucros. Houve, mesmo depois da guerra com Castela, períodos
difíceis para nós. Nunca a fome, ou o espectro da miséria, mas tínhamos de nos
apertar, pois o dinheiro mal chegava para as despesas. Só mais tarde, no
contacto com a Corte, através de João da Paz, e com Abravanel e mestre Vizinho,
a loja do pai começou a frutificar e em breve faziam-se cópias de cartas para a
marinhagem. Recordo-me de meu pai ter encomendas frequentes de capitães
ingleses, flamengos, de mercadores alemães, italianos, franceses... Por alturas
da aventura de Castela recordo que muitas vezes desejei com saudade as belas
maçãs de Sintra, os frutos úberes como os figos, as gordas pêras dos arredores
da Serra da Lua, dos vinhedos da Costa Norte daquela Serra e da zona de Coimbra
e ainda o pão alvo de trigo que eu sempre comi, e os camponeses e mesteirais só
engolem em dias de festa, e pertence por direito ao dia-a-dia da gente rica. Comi
castanha, bolota, centeio, cevada, favas, chícharos e lentilhas, como toda a
gente, que vinham de fora de Lisboa, mais caros, é certo, mas vinham e
vendiam-se nos mercados da cidade e saíam da horta do convento do tio Gil e das
de alguns amigos com quem trocávamos as vitualhas. Depois os tempos melhoraram
e, como disse, meu pai, desde as cartas de marear a panos que vinham de Itália,
começou também a exportar para os países do Norte. Até bebi cerveja dessas
zonas, que veio num barco da Liga, e não gostei. Nós, por cá, embora nalguns
locais aqui e ali, no Norte, certos camponeses a tentem fabricar (é uma
tradição velha e quase perdida), não a bebemos. Preferimos o vinho, mas provei.
Era amarga e pesada, essa bebida forte, mas que quase não embriaga, da cor do mel,
brilhante e espumosa e que quebra a sede.
Meu
pai, depois, desenvolveu, com mais dois empregados de origem maiorquina, a sua
oficina de cartografia, mas Rainiero, que era mais velho do que eu dez anos, e
Salvago, um genovês emigrado, praticamente tomaram conta da loja e da sua
orientação, pelo menos do grosso do trabalho mais importante. Foi assim que mestre
José Vizinho passou a ser confidente e amigo de meus pais. Aldonça vendia
pescado, desde o atum, ao pargo e golfinho que era apanhado junto da costa,
onde se constroem armações para o prender. Vendia-o fresco ou salgado e até o
secava ao sol para ser carregado nas viagens por mar, de longo curso. O seu
casamento com Rainiero ficou marcado para um ano após a viuvez, mas o que é
certo é que, pouco antes, ele já, lá dormia, às escondidas da vizinhança... E,
em Castela, o nosso velho Rei caminhava para a grande desilusão da sua vida,
depois da morte da mulher, e o Príncipe, sereno como sempre, pujante na sua
juventude saudável que julgava não acabar nunca, traçava já na sua mente
privilegiada, o grande plano, o esquema perfeito da sua imperial concepção de
poder que o iria lançar na única e exclusiva guerra da sua vida e que só acabou
sob o meu olhar, uns momentos antes de Alvor, nas terras da Serra de Monchique».
In
Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial
Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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