quarta-feira, 30 de maio de 2018

Joana. A Louca. Linda Carlino. «Joana, Filipe e Fernando desmontaram e aproximaram-se dos degraus. O silêncio desceu sobre a multidão e o arcebispo Cisneros avançou, transportando o seu magnífico báculo de ouro…»

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«(…) Um céu de um azul brilhante e um sol quente estendiam-se pelo vale e subiam até aos montes. Ela e Filipe, cada um sob um dossel que ostentava os seus brasões e acompanhados pelo enorme séquito, estavam a uma légua de Toledo. O pai, rodeado pelos seus nobres, clérigos e guardas, viera ao seu encontro. Eram umas boas-vindas para além de tudo quanto sonhara. O único desapontamento era a ausência da mãe, que ficara em casa, ainda indisposta. Subiram juntos o monte, entrando na cidade pelo arco em ferradura da antiga Porta Bisagra. Depois prosseguiram pelas ruas estreitas, atapetadas de alecrim e tomilho, até à Porta do Sol. O cortejo era um esplendor de cores que brilhavam como ouro e prata. O povo, inclinado nas varandas adornadas com tecidos de todos os tipos e cores, dava-lhes vivas, enquanto subiam até à catedral. Longa vida aos Reis Católicos. Longa vida à princesa Joana e ao príncipe Filipe. Que Deus abençoe os vossos filhos, lá tão longe, e lhes conceda uma longa vida. Joana acenava e sorria, sentindo que o coração lhe ia rebentar de orgulho, adorando cada momento.
Os tambores, as cornetas, as trompas e os cornetins aumentavam o clamor. Pétalas de flores caíam profusamente sobre os dosséis e sobre os ombros e as cabeças dos que seguiam no cortejo. Entraram, por fim, na grande praça sobranceira à catedral. Também ali a multidão era enorme, apertando-se em espaços que pareciam não existir antes, agarrando-se às paredes e às grades das janelas, tal era a sua determinação em ver a princesa. A larga frontaria da sua igreja, com os seus portais enormes, era ainda mais imponente do que se lembrava. Os santos de pedra no topo das colunas e os que repousavam nos nichos arqueados olhavam, como se se alegrassem pelo seu regresso, alguns pareciam mesmo ter os braços estendidos em boas-vindas. Aquela catedral, onde Joana fora baptizada, iria testemunhar daí a dias a proclamação dos seus direitos hereditários às coroas de Espanha.
Joana, Filipe e Fernando desmontaram e aproximaram-se dos degraus. O silêncio desceu sobre a multidão e o arcebispo Cisneros avançou, transportando o seu magnífico báculo de ouro cravejado de jóias. Era aquele homem que em tempos tanto a intimidara? Os seus olhos não lhe trespassavam a alma e a boca já não era dura e pronta a criticar. Joana decicliu que parecia muito mais um tio simpático do que um padre desaprovador. Talvez o tivesse julgado mal no passado. No interior da catedral, os pilares, a arcaria das capelas, as divisórias e as estátuas eram banhados pela luz do Sol que entrava a jorros pelas inúmeras janelas. O cortejo passou pela coluna que marcava o local do primeiro altar, havia muitos séculos, quando a Virgem Maria descera à Terra e abençoara o monge Ildefonso por defender a sua virgindade contra os descrentes. Joana sabia que Filipe não daria importância a isso, mas mesmo assim tinha de lhe dizer. Passaram finalmente para lá da divisória de prata do coro e foram levados aos seus lugares.
À missa solene foi demasiado longa, para já não falar dos cânticos a partir do intróito, que, apesar de imaculados graças a um excelente cantor, se revelaram uma grande frustração. Filipe inspeccionava as unhas finamente tratadas com mais intensidade a cada minuto que passava e Joana deixou o olhar vaguear para além das nuvens azuladas do incenso até às capelas laterais; pousou-o, por fim, nos arautos chorosos, em tamanho natural, com os seus tabardos de cores magníficas, que guardavam o túmulo de Catarina de Lencastre, sua bisavó. Começou, então, a pensar na irmã Catarina e em como seria a vida em Inglaterra. O coro cantava o Kyrie Eleison, Christe Eleison. Acabou, por fim. Agora podia ir ver a mãe». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-234-231-5.

Cortesia de EPresença/JDACT