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O
Homem de Alexandria e a Pedra Filosofal
«(…) A tinta púrpura, com o tempo,
ficara violeta pálida e a prata das iluminuras e das grandes letras do início de
cada capítulo, negra. Lá fui com o rolo embrulhado, num pedaço de flanela
manchada, ter com mestre Tadeu ao seu laboratório. O primeiro gato dele que
conheci mirou-me, cheirou-me e foi deitar-se, satisfeito, num escabelo semidestruído
que jazia a um canto. Rufus. Dele, de meu amigo e mestre, o que me ficou, Santo
Deus? A réstea da sua sabedoria que mal apreendi porque era demasiadamente
jovem e o tempo, posteriormente, não me concedeu a paz necessária, e um gato
que veio comigo. Em 1475 Rufus tinha um ano, nem tanto. Hoje, em Nápoles, afago
um neto dele, tão fulvo e belo como ele, já com cinco anos de idade, e que
morrerá no meu colo como sucede sempre quando não abandonamos os seres amados e
os nossos fiéis companheiros de caminho durante a curta vida que Alguém nos
concedeu.
Por dias, debruçado sobre o
manuscrito, como um amante sobre o corpo da amada, não pensei na guerra, não
pensei em mais nada. Queria apenas saber quem mais, além dos que conhecia,
antes de mim, escrevera a história do homem que enchia o meu espírito e as
minhas noites de insónia. Ao contrário da tradição antiga dos Reis portugueses,
da Borgonha, da França, para quem Ciro e Dario representavam o exemplo máximo
do poder real, eu amava Alexandre e iria escrever a sua história. Foi o meu
primeiro contrato com a minha missão de escritor e decidi ainda tornar-me
discípulo daquele velho simpático, solitário, sábio e muito terno que me
recordou sempre uma criança nos momentos de alegria, mas que por detrás daquela
bela fonte enrugada deixava cintilar o fulgor de uma profunda inteligência.
Debruçado sobre o atanor, enquanto orava ou meditava, mexendo nos instrumentos do
seu ofício, nos intervalos da sua função de físico, ele ia-se libertando de
todo o sedimento humano, tornando-se tão livre que nem a morte o poderia tocar
ou limitar e esse facto, que eu hoje compreendo finalmente, é o terminus,
o fim da Grande Caminhada, a dissolução no Sol de Luz Negra, o Renascer do
Espírito, o Caminho para Petra, que foi o meu e o é de todos os que
buscam a Verdade, a Fase Derradeira, a Pedra Filosofal.
A morte de Lancelot
Meus estudos prosseguiam e a
escrita também. Vivia então aquela euforia dos escritores jovens e
inexperientes que julgam conter numa curta frase todo o talento do universo. O que
não deixa de ser saudável, belo, comovente, tremendamente terno por confiança
total no destino como num grande amor. Sentia a obra avolumar-se dentro de mim
e, às vezes, na cama, na boa e pesada cama que era o único luxo do meu quarto,
a sensação que eu tinha era de que ela tentava, para sair dos limites da minha
alma extasiada, furar, estalar a minha carne, a minha pele. Por esse tempo, meu
primo Diogo morreu no mar e Aldonça ficou viúva, sem amparo. Rainiero começou a
rodeá-la de carinhos, inclusive até falou com meu pai. Ela era mais velha,
embora, mas uma mulher ainda jovem, apetitosa... Rainiero era estrangeiro, mas
em breve herdaria qualquer coisa dos pais lá para a Itália e Aldonça montara
uma banca também no mercado dos legumes e outra no do peixe. A vida ir-se-ia
compor, como sempre, e Aldonça aceitou.
Que
lhe restava fazer com filhos para criar e sem homem para ajudá-la? Minha mãe retirou
debaixo da enxerga, ou entre a enxerga e o colchão, não sei, umas moedas das
suas economias e, durante dias, ela e a prima combinaram as coisas como duas
irmãs. Até, como se se tratasse de uma noiva jovem, minha prima recebeu uma
velha alfombra espesso e quente para o novo tálamo que era, aliás, o mesmo onde
ela dormira com o marido, oferta de meu pai». In Seomara Luzia da Veiga
Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995,
4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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