quinta-feira, 3 de maio de 2018

Segredos de Lisboa. Inês Ribeiro e Raquel Policarpo. «Ligado desde cedo ao comércio do Mediterrâneo, a este pequeno porto atlântico chegaram também os ecos e as consequências dos grandes acontecimentos que ali se desenrolavam»

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«(…) Quem hoje passa pela Rua Augusta também está longe de imaginar que, instalado no rés do chão da sede do Millennium BCP, no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, se escondem séculos de histórias e vivências, e a soleira da porta onde o pescador arranjava as suas redes. Aqui, o passado chega até nós não através de histórias contadas à lareira, mas de um conjunto de intervenções arqueológicas, iniciadas em 1991. Devido a um projecto de remodelação que pretendia criar garagens subterrâneas num edifício pombalino, a existência de vários vestígios levou a que o espaço fosse alvo de uma escavação integral e musealizado. Após a conclusão, em 1995,o novo Núcleo Museológico (doravante NARC) abriu as portas e as histórias ao público.
O NARC é hoje um sítio a não perder na cidade de Lisboa, onde os vestígios arqueológicos e as vitrinas recheadas de peças contam a História daquele local, tão diferente do que já foi! Na verdade, olhando à volta para a Baixa Pombalina e as suas ruas geometricamente organizadas, poucos conseguem imaginar o profundo vale que aqui se estendia há dois mil anos, escavado por duas ribeiras que confluíam junto ao actual Rossio e se juntavam a um braço do rio, uma pequena enseada do Tejo. Sobre o leito encanado desses cursos de água descem hoje as avenidas da Liberdade e Almirante Reis, e o vale separa as colinas hoje chamadas do Castelo e de São Francisco, tendo perdido a sua profundidade depois de séculos de aterros e da construção de uma nova cidade.
Nas margens deste esteiro estendiam-se as praias onde, desde o século VIII a. C., aportaram e se estabeleceram vários povos oriundos do Mediterrâneo Oriental e do Norte de África, na sua demanda por metais que pudessem comerciar e exportar para várias zonas do Mediterrâneo. Assim surge o nome fenício de Allis Ubbo, que significa pequena enseada, descrição apropriada para este porto seguro onde Fenícios e  Cartagineses se fixam e abrem os seus entrepostos comerciais. Nas praias fluviais do braço do rio vão também criar uma pequena comunidade, um núcleo de pescadores vivendo em simples habitações, que surgem à nossa frente quando descemos ao piso subterrâneo do NARC. Aqui as casas têm planta rectangular, e as quatro habitações que foram escavadas encostam-se umas às outras, partilhando paredes comuns. Hoje apenas conseguimos ver a sua base em pedra, uma vez que as paredes, construídas em canas e barro, há muito desapareceram. Também o restante casario fica entregue à nossa imaginação, estendendo-se para além das fundações que rodeiam a área arqueológica. No interior das casas, ao centro, pequenas lareiras de seixos rolados iluminavam e aqueciam os habitantes, que ali cozinhavam e se reuniam à luz da fogueira.
As peças do dia a dia desta comunidade, incluídas na exposição, reflectem bem as actividades ali desenvolvidas, como os pesos utilizados nas redes de pesca, os grandes potes de cerâmica para armazenar alimentos ou os pequenos fragmentos de taças, como aquela onde se vê gravado o pequeno barco fenício que hoje dá a imagem ao Núcleo Arqueológico.
Ligado desde cedo ao comércio do Mediterrâneo, a este pequeno porto atlântico chegaram também os ecos e as consequências dos grandes acontecimentos que ali se desenrolavam. O crescimento de um novo Império e as guerras pelo domínio do comércio marítimo, a destruição de Cartago e o fim da influência púnica chegam à Península pela mão das Guerras Púnicas e de um novo conquistador, o Império Romano.
Em 138 a.C., o general romano Décimo Júnio Bruto conquista a região e estabelece-se no topo da actual colina do Castelo. Tem início um próspero período para a nova cidade romana de Felicitas Iulia Olisipo, que adquire grande importância comercial pela sua posição estratégica no comércio marítimo entre o mar Mediterrâneo e o Norte da Europa. Relevante para a prosperidade da cidade foram também os recursos naturais da região, que permitiram o desenvolvimento de uma importante indústria de conservas de peixe, ainda hoje tão próximas da nossa gastronomia. A abundância de peixe e sal e a proximidade com o rio fizeram surgir ao longo da costa de Olisipo dezenas de fábricas que se dedicavam a produzir variados tipos de conservas, desde o simples peixe salgado às pastas e molhos como o garum e o liquamen.
Uma das bases da alimentação romana, os produtos piscícolas eram aproveitados por uma indústria muito desenvolvida que levava o pescado a todos os romanos que não viviam perto da costa e com acesso ao melhor peixe fresco. Sem acesso a conservantes artificiais ou frigoríficos, maravilhas do século XX, a salga foi, durante milénios, a única forma de conservar o peixe e a carne». In Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-706-3.

Cortesia de EdosLivros/JDACT