«(…) Quem hoje passa pela Rua Augusta
também está longe de imaginar que, instalado no rés do chão da sede do Millennium
BCP, no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros, se escondem séculos de histórias
e vivências, e a soleira da porta onde o pescador arranjava as suas redes. Aqui,
o passado chega até nós não através de histórias contadas à lareira, mas de um conjunto
de intervenções arqueológicas, iniciadas em 1991. Devido a um projecto de
remodelação que pretendia criar garagens subterrâneas num edifício pombalino, a
existência de vários vestígios levou a que o espaço fosse alvo de uma escavação
integral e musealizado. Após a conclusão, em 1995,o novo Núcleo Museológico (doravante
NARC) abriu as portas e as histórias ao público.
O NARC é hoje um sítio a não perder
na cidade de Lisboa, onde os vestígios arqueológicos e as vitrinas recheadas de
peças contam a História daquele local, tão diferente do que já foi! Na verdade,
olhando à volta para a Baixa Pombalina e as suas ruas geometricamente organizadas,
poucos conseguem imaginar o profundo vale que aqui se estendia há dois mil anos,
escavado por duas ribeiras que confluíam junto ao actual Rossio e se juntavam a
um braço do rio, uma pequena enseada do Tejo. Sobre o leito encanado desses cursos
de água descem hoje as avenidas da Liberdade e Almirante Reis, e o vale separa as
colinas hoje chamadas do Castelo e de São Francisco, tendo perdido a sua profundidade
depois de séculos de aterros e da construção de uma nova cidade.
Nas margens deste esteiro estendiam-se
as praias onde, desde o século VIII a. C., aportaram e se estabeleceram vários povos
oriundos do Mediterrâneo Oriental e do Norte de África, na sua demanda por
metais que pudessem comerciar e exportar para várias zonas do Mediterrâneo. Assim
surge o nome fenício de Allis Ubbo, que significa pequena enseada,
descrição apropriada para este porto seguro onde Fenícios e Cartagineses se fixam e abrem os seus entrepostos
comerciais. Nas praias fluviais do braço do rio vão também criar uma pequena
comunidade, um núcleo de pescadores vivendo em simples habitações, que surgem à
nossa frente quando descemos ao piso subterrâneo do NARC. Aqui as casas têm
planta rectangular, e as quatro habitações que foram escavadas encostam-se umas
às outras, partilhando paredes comuns. Hoje apenas conseguimos ver a sua base em
pedra, uma vez que as paredes, construídas em canas e barro, há muito
desapareceram. Também o restante casario fica entregue à nossa imaginação, estendendo-se
para além das fundações que rodeiam a área arqueológica. No interior das casas,
ao centro, pequenas lareiras de seixos rolados iluminavam e aqueciam os habitantes,
que ali cozinhavam e se reuniam à luz da fogueira.
As peças do dia a dia desta comunidade,
incluídas na exposição, reflectem bem as actividades ali desenvolvidas, como os
pesos utilizados nas redes de pesca, os grandes potes de cerâmica para armazenar
alimentos ou os pequenos fragmentos de taças, como aquela onde se vê gravado o
pequeno barco fenício que hoje dá a imagem ao Núcleo Arqueológico.
Ligado desde cedo ao comércio do Mediterrâneo,
a este pequeno porto atlântico chegaram também os ecos e as consequências dos
grandes acontecimentos que ali se desenrolavam. O crescimento de um novo
Império e as guerras pelo domínio do comércio marítimo, a destruição de Cartago
e o fim da influência púnica chegam à Península pela mão das Guerras Púnicas e de
um novo conquistador, o Império Romano.
Em 138 a.C., o general romano
Décimo Júnio Bruto conquista a região e estabelece-se no topo da actual colina
do Castelo. Tem início um próspero período para a nova cidade romana de Felicitas
Iulia Olisipo, que adquire grande importância comercial pela sua posição
estratégica no comércio marítimo entre o mar Mediterrâneo e o Norte da Europa. Relevante
para a prosperidade da cidade foram também os recursos naturais da região, que permitiram
o desenvolvimento de uma importante indústria de conservas de peixe, ainda hoje
tão próximas da nossa gastronomia. A abundância de peixe e sal e a proximidade com
o rio fizeram surgir ao longo da costa de Olisipo dezenas de fábricas que se dedicavam
a produzir variados tipos de conservas, desde o simples peixe salgado às pastas
e molhos como o garum e o liquamen.
Uma
das bases da alimentação romana, os produtos piscícolas eram aproveitados por uma
indústria muito desenvolvida que levava o pescado a todos os romanos que não viviam
perto da costa e com acesso ao melhor peixe fresco. Sem acesso a conservantes artificiais
ou frigoríficos, maravilhas do século XX, a salga foi, durante milénios,
a única forma de conservar o peixe e a carne». In Inês Ribeiro e Raquel
Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-626-706-3.
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