quinta-feira, 31 de maio de 2018

No 31. João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Não se podia exigir mais de uma rapariguinha tímida, frágil, sempre empurrada pelas ambições da Corte e ferida no seu íntimo orgulho pela terrível mácula de bastardia»

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A morte de Lancelot
«(…) Embora João sempre tivesse achado, o que evidentemente nunca referiu em público, que o pai era dotado de uma tremenda falta de senso político, e o jovem bem podia, já nessa altura, dar-lhe alguns ensinamentos, apoiava o pai contra as opiniões do Conselho. Evidentemente que o Príncipe era novo, nimbado recentemente dos louros da glória em Arzila, e a luta, a guerra, no plano pessoal, como guerreiro, agradavam-lhe, mas não tenho dúvidas de que a esse seu entusiasmo presidia mais que uma simples vaidade pessoal. O duque de Bragança sentiu-se aborrecido com a premente oposição do real primo e até a sua obstinada pressão sobre os conselheiros para apoiarem as pretensões do Rei a casar com a juvenil Princesa de Castela e envolver-se numa guerra que em breve se traduziria por muito mais que a simples interferência de um país, cujo exército ia meter-se na luta intestina entre duas facções que se digladiavam além-fronteiras, mas no grave litígio entre duas Coroas.
O chanceler Rui Gomes Alvarenga, um velho com idade de ser pai do Rei, opôs-se frontalmente e as razões eram muitas, de peso e, de entre elas, a que se prendia com o facto de o Rei não ser homem destinado a tal empresa. Mas o Príncipe sonhava com a Coroa de Castela. Na sua alma ávida, educada pela leitura dos textos latinos e gregos, por Aristóteles e Cícero, pela história de César, brotava a semente do futuro. Hoje sei o que ele pensou. Aliás, comecei a compreender logo antes da morte do pai… Fernando de Aragão e Isabel de Castela não estavam minimamente interessados em largar para Portugal a Coroa de Castela. Que o primo se casasse com a Beltraneja era redondo disparate, mas que pusesse em causa a legítima herança de Isabel, isso nunca! Era a guerra.
Não sei o que a jovem dona Joana, então apenas com treze anos, pensou daquele seu cavaleiro andante, quase com quarenta anos, ou já nos quarenta, de barba cerrada e calvo, que fora já elegante, mas começava a ficar obeso, respirando com dificuldade quando se cansava, embora de cândido e sorridente olhar. Ainda há pouco largara as suas bonecas de criança e, embora a sua idade fosse já a conveniente para umas bodas, não sei se teria visto nesse bem-intencionado Lancelot de meia-idade mais que a pedra necessária ao seu mantimento no trono do pai contra as violentas oposições e desejos exacerbados de Fernando e Isabel. De resto, ela foi, toda a vida o seria, apenas o peão no tabuleiro de xadrez do jogo peninsular, desde as estúpidas decisões do pai, que lhe negara a paternidade em Toros de Guisando, até, depois, às labirínticas opções do Príncipe João, em 1480 e, depois como Rei, quando ergueu o seu estandarte à custa dela e do seu nome para pressionar os Reis vizinhos. Dona Joana também não desejava morrer como o seu hipotético noivo, Afonso, talvez envenenado por Fernando e Isabel, como lhe sussurravam seus apoiantes, e, de entre eles, o arcebispo de Toledo.
Dona Joana era bonita, embora sem a estonteante beleza da mãe nem aquela auréola fascinante das mulheres que nascem com um destino especial. Não se podia exigir mais de uma rapariguinha tímida, frágil, sempre empurrada pelas ambições da Corte e ferida no seu íntimo orgulho pela terrível mácula de bastardia que a marcaria até à morte como um ferrete de patíbulo. Vítima eterna, dona Joana não teve nenhuma oportunidade na vida e também nunca ninguém a deixou exprimir-se em liberdade. Pertence àquele tipo de seres a quem o destino tudo roubou menos a agonia de se saberem condenados ao silêncio, porque só o facto de existirem lhes retira o direito mínimo a um lugar e à felicidade na Terra. Conheci, ao longo da minha vida, e sem sangue real, outras pessoas como ela.
Afonso de Portugal não conseguiu mais na sua campanha em Castela que andar em círculos como um cão atrás da cauda. Ele e o seu exército. O Verão escoou-se sem que uma saída definitiva brilhasse no escuro horizonte das ambições do Rei português. Não fui recrutado, como muita gente que conheci, mas dois serviçais do mercador Bartolomeu Lagos e três braceiros amigos de Rainiero por lá andaram e no regresso, um deles ficou sem uma perna e outro morreu, os sobreviventes contavam o que foi aquele cirandar sem descanso, com um Verão tórrido que fazia arder o couro e as roupagens debaixo das couraças e das cotas, e as lâminas e ferros, depois da soalheira, em água, até ferviam em vapores como os do Inferno. Nem um nem outro, que relataram a campanha, sabiam Latim, nem ler nem escrever, é o mais certo e, se o conseguiam, era à custa do suor e do tempo a juntar, letra a letra, a palavra que a tinta negra do copista desenhara, mas quantas vezes eu recordei, naquele quadro ardente de homens em guerra cirandando por terras estrangeiras, Horácio: nos manet Oceanus circumvagus; arua. beata petamus arua, divites et insulas...» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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