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Uma porta entreaberta é uma voz que chama para um tempo novo. O que terá esta, para
além do fausto que antecipa? Um perfil de princesa em passadas curtas ilumina, de
quando em quando, o meu ângulo de visão, fazendo e refazendo a distância entre as
gelosias e a parede oposta. Deve ser ela a neta de Jaime I de Aragão e Catalunha,
filha de dona Constança de Hoenstaufen. Não parece tão loira como o trigo a ondular
nos campos de Zaragoza, conforme se dizia em Penedès, mas o cabelo é claro, quase
dourado nas madeixas da frente, ainda caídas de cada lado do rosto. Desliza ainda
pela câmara de cabeça no chão, a ensaiar o compasso que daí a pouco marcará o ritmo
do cortejo. Aliada ao nome suporta já uma aura de santidade, arrastada pelos feitos
da tia avó da Turíngia, abrindo caminho no coração ingénuo da crença popular.
Anseio que volte, instantes depois de a saber por detrás das janelas, a vigiar o
movimento da praça. E à falta de largo campo, vejo-a como nos meus sonhos, prolongados
neste fim de corredor.
De repente sobressalta-me a voz que
tantas vezes me ordenou sossego, e me obrigou a rabiscar o pergaminho, a voz de
minha tia Soledad. Devia estar nas arrumações do fato da infanta. Com certeza já
de posse do recado do moço de estrebaria, porque informa dona Isabel que
precisa fazer uma ausência curta, para tratar de um assunto urgente. E já no
umbral da porta sossega a noiva: mas não vos enfadeis, senhora dona Isabel, num
pronto chegarei; se prometes não demorar... Só tenho tempo de correr pelas escadas
e anichar-me no vão da primeira fresta, como um santo de pedra. De pouco adianta.
Como se vasculhasse um objecto por ela mesma guardado, o braço de minha tia alcança-me
o exacto ponto da orelha a jeito, e obriga-me a olhá-la de pescoço torcido: ousado,
como sempre. Estou a ver que seguiste Juan; ele pediu que viesse... ia negar? Ah
foi? Mas não foi aguisado que subisses, pois não? Trata de esgueirar-te à minha
frente, não quero ser responsável pela intromissão.
Posso agora confessar que
Soledad, a menor de todos, minha mãe, a do meio, já falecida, meus tios Ángel e
Juan, os gémeos mais velhos, são filhos do pecado de uma monja de Santa Liestra
com um nobre trovador da Catalunha. O pecado maior seria de minha avó, escondida
para sempre de olhos indiscretos num reino de silêncio. Ao nobre ficava bem
exibir o fruto do apetite carnal de uma abadessa, que não lhe resistira. Ainda ouço
minha tia pedir a uma criada menor que suba ligeira, para fazer companhia a dona
Isabel, enquanto as damas se arranjam. Isto já depois de atravessarmos de novo o
Salão do Trono, sem passar despercebidos. Há um cavaleiro fardado de modo estranho,
que me lança um olhar surpreendido, depois um sorriso afectuoso. E uns passos adiante
desço as escadas do átrio até ao exterior, não muito depois de minha tia. O rapaz
esfrega o último cavalo. Juan parece menos agitado, já a cochichar com a irmã na
parede da catedral, no lado contrário, mesmo por debaixo de uma das torres. Aí deve
sentir-se a salvo de ouvidos indiscretos.
Livre
de obrigações, a presença agora aceite pelos guardas, exploro o caminho ao longo
da Carrer dos Condes, rente à parede dos cómodos onde se aloja gente nobre de Montpellier
e Maiorca. Passo ao lado da porta do jardim de acesso ao scriptorium,
entrada cómoda para o interior do paço quando não há guardas façanhudos. Furo a
barreira de cavaleiros por entre duas bestas. Contorno sem medo o braço saliente
do edifício pela perpendicular de Santa Clara, para entrar na Plaça del Palau, com
muita gente concentrada. Mas ao fundo das escadas quatro escudeiros vigiam a ousadia
de intrusos, ainda que esteja cerrada a entrada nobre do paço». In
Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN
978-989-637-034-3.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT