terça-feira, 29 de maio de 2018

A Marquesa de Santos. 1813-1829. Paulo Setúbal. «Que há, minha filha? Que há? Nossa Senhora! Pois será que vosmecê ainda não saiba? Nem vosmecê, pároco? Mas que é que aconteceu?»

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«(…) No começo não foi nada: arrufos, azedumezinhos, coisicas. História de marido e mulher. E lá iam vivendo. Mas depois! Depois, pe. Bernardo, que inferno! Aquilo eram brigas a toda hora, fusquinhas de parte a parte, bate-bocas, nomes feios, ciumadas, o diabo! Enfim, para coroa disso tudo, lá vai o bruto e enfia a faca na mulher. Duas facadas! Duas facadas na coxa. Ora, aí está no que deu um casamento tão bem começado... Numa sangueira, atalhou o padre, numa sangueira de enojar a gente! O bugre deixou a menina a esvair-se, continuou João Castro. Deixou a menina quase morta. Ah, o que padeci! A filha a morrer nos meus braços e a cidade inteira a ferver de mexericos. Que escândalo tremendo! O maior escândalo de São Paulo. Afinal, pároco, depois de muita barulheira as coisas foram-se arrumando devagarinho: a menina sarou, o casal separou-se, ele para lá, ela para cá, e a vida, com a graça de Deus, tornou ao velho ramerrão. Eis que agora, com a chegada do Príncipe, corre pela cidade um zunzum de enlouquecer um homem. Diga-me lá, pe. Bernardo, vosmecê ainda não escutou o falatório? Escutei, respondeu o padre com reserva. Escutei!
Então, reverendo, aqui entre nós, como amigos, seja franco: que é que vosmecê escutou? Pe. Bernardo aproximou-se de João Castro. Pigarreou. E confidencial, a voz baixa, murmurou sisudamente: anda por aí muita coisa. O que anda, porém, de boca em boca, muito falado, é que o Príncipe antes de entrar na cidade, portou casualmente na chácara de vosmecê, onde conheceu a sra. Domitila. É verdade? É! Pois bem; dizem então que Sua Alteza, daí para cá, ficou perdido pela moça. E é um cortejá-la! E um cortejá-la muito às escâncaras. Com muito desabrimento! Com muito rapapé! Será isso verdade?
João Castro ia responder. Nisso, quebrando a pacateza da cidadezinha, irrompeu bruscamente larga troada ensurdecedora. Era a artilharia do Carmo que disparava com estrondo. Eram os sinos de Santa Tereza que repicavam bimbalhantes. Roquetes e morteiros que salvavam. Girândolas e foguetes que estouravam no ar. É o príncipe! Enquanto ambos prestavam ouvidos ao barulho, passos violentos, muito apressados, ecoaram de golpe no corredor. Logo após, arfando, surgiu na varanda a Titília Castro. Tinha o ar de quem viera correndo. Estava fremente. Bradou aos dois homens com alvoroço: sabem a grande novidade? João Castro e pe. Bernardo olharam para a moça com surpresa. Aquele rompante, aqueles modos, a exaltação da voz, o desabalo dos gestos, tudo aquilo, assim de imprevisto, veio desentorpecer, como grossa lufada de ar fresco, a morna pasmaceira dos velhos. Que há, minha filha? Que há? Nossa Senhora! Pois será que vosmecê ainda não saiba? Nem vosmecê, pároco? Mas que é que aconteceu?, exclamou o padre com impaciência. Vosmecê assusta a gente! Que há? Vamos! Desembuche. Diante dos ouvintes, com largo gesto, a filha de João Castro, rasgadamente, teatralmente, lançou esta coisa enorme: o Príncipe acaba de proclamar a Independência do Brasil! O coronel e o padre, como tocados por um ferro em brasa, ergueram-se dum salto. Quê? Quê? O Príncipe acaba de proclamar a Independência.
Vosmecê está doida, atalhou o padre, atordoado. Doida! Isso é lá possível? Doida, pe. Bernardo? Doida, eu? Mas é só ver o que vai pela cidade. Um rebuliço. Bandeiras hasteadas por toda a parte. Foguetes pelo ar. Já se reuniu o Senado da Câmara. O Largo do Colégio está assim de povo! Prepara-se já grande manifestação ao Príncipe. Mas isso é um sonho, exclamava João Castro. É de assombrar!, tartamudeava o pároco. Isto é de assombrar! Pe. Bernardo agarrou as mãos da moça. E sacudindo-as: como vosmecê sabe de tudo isso? Como sei? Pois vi, pároco! Viu? Vi. Vi com estes olhos! Mas viu o quê? Vi tudo! Mas tudo o quê?, bradava o padre, ansiado. Tudo o quê, moça? Vamos lá, fale! Desembuche! Irra... Eu vi a proclamação, pároco! Viu a proclamação? Sim, senhor! Vi! A coisa deu-se assim: eu ia à chácara de meu pai, que o reverendo bem conhece, lá no Ipiranga. Foi quando topei com a Guarda de Honra e a comitiva do Príncipe sesteando no outeiro...» In Paulo Setúbal, A Marquesa de Santos, (1925-1935), Wikipédia, Editora Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-134-1, 978-858-130-143-3.

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